terça-feira, 26 de maio de 2009

FAROL DE MILHA- III Capítulo

Faz muito, muito tempo mesmo que não vejo a Tereza, estávamos morando em casa separada.
Sr. Adalberto não estou perguntando nada.
Claro, claro, só estou querendo colaborar.
Vamos por parte, então o senhor estava na casa da sua amiga, militante política com um plano para seqüestrar o presidente em sua visita ao Rio, correto?
Sim.
Pelo amor de Deus homem, como posso acreditar numa loucura dessas. Porque não confessa que assassinou sua mulher, que ela o traía, que perdeu a cabeça. Essas coisas acontecem, sabe. E ademais confessando, a pena será menor.
O doutor está me acusando sem provas, quero dar um telefonema, falar com meus advogados.
O telefone está sem linha, chove muito, em dias assim é quase impossível conseguir uma ligação.
Porque o senhor correu quando avistou a polícia?
Não corri da polícia, é que quis alcançar Conceição.
Ela estava fugindo do senhor, o que houve? desentenderam-se, são amantes, ela é bonitinha.?
Por favor, delegado, vamos com calma.
Calma, o que ? Já cansei dessa sua lenga-lenga.
Guardas algemem o homem.
Adalberto acordou com dores nas costas, noite mal dormida, que sonho terrível. Tereza ensangüentada, um cachorro lambia-lhe os lábios, cheiro de urina. Foi quando percebeu que estava todo molhado. Como aconteceu aquilo, não se lembrava. Será que mijei dormindo? Melhor confessar tudo, não estou suportando, capaz de ter um treco. Não. Não posso confessar. É preciso manter a serenidade. Seus joelhos doíam muito:
guarda preciso de ajuda não consigo levantar-me.
O senhor pensa que todo mundo aqui é idiota, e?
Não claro que não, só preciso ficar em pé.
É uma jogada sua.
Mas é óbvio que não, sou um cidadão, não sou um marginal.
Por que o sujeito aí pensa que é melhor que os outros é, só porque é estudado?
O que você sabe da minha vida?
Sabemos tudo doutorzinho de merda.
O delegado teve uma conversinha com sua mãe.
O que?
É, e nem precisou intimação não, foi só um telefonema, ela veio rapidinho.
Deve gostar muito do meninão aí.
Lindos olhos os dela. E como fala bonito, falou foi muito. O senhor é mesmo nervosinho desde criança, e pelo jeito chegado numa malvadeza, ver bicho morrer, cheirar sangue.
Alguma tara doutor?
Vá à merda.
Solta, solta meu pescoço, tenho meus direitos, senhor policial.
Então porque o sujeito aí não desembucha, quem sabe eu entenda.
Não tenho nada a falar com o senhor.
Azar o seu, vai apodrecer nesta cela.
Por um momento Adalberto pensou em confessar, chamar o delegado explicar direitinho o que realmente aconteceu, talvez ele compreendesse, era um homem. E Tereza deixava qualquer um louco.
Não, não podia esperar por compreensão, de nada adiantaria apelar para honra, dizer que perdeu a cabeça, que a amava, que não conseguia viver com a traição. Falar de suas tardes de angústia, enquanto Tereza retocava o batom, seu cheiro doce ainda na memória, suas pernas levemente bronzeadas, os cabelos molhados, a imagem do amante. Eles juntos.
Não, no fundo sabia-se um fraco, um conservador, arraigado a velhos costumes, velhas idéias.
O jeito era negar, negar, não fora ele e pronto. Limpou tudo antes de sair, a mesa, a garrafa de vinho, as taças, admirava sua organização, seu jeito excessivamente detalhista.
Só não mexeu mesmo no corpo estendido no meio da sala, o punhal encravado no ventre, a poça de sangue que se formou, e o último olhar de Tereza. Porque será que aquele olhar, feito o da mãe, incomodava-lhe tanto.
Ainda hoje, passado tanto tempo, sentado em frente ao mar, relembra cada detalhe, a amiga Ceição, Tereza, a mãe, os bichos, a infância, as noites na prisão.
Solidão e tristeza, mas nada, nada se compara ao azul daquele olhar, ou seria verde, como o mar.

sábado, 23 de maio de 2009

FAROL DE MILHA capítulo II

- não pensaram em mim, é? Ele Beto, que nunca esconderá, desde garoto, sua queda para herói, queria o papel de destaque, sentia-se pronto. Com ar de superioridade abordaria o presidente logo que este desse os primeiros passos junto à comitiva. Se preciso usaria da força física, coisa que, sempre fez questão de demonstrar.
Procurar Conceição encheu-lhe de confiança. Não podia contar-lhe a encrenca em que se metera. Não agora, melhor mesmo era ficar quieto e seguir em frente. O jeito era fingir sono, dizer boa noite. Foi o que fez. Dormiu profundamente e acordou com a amiga trazendo-lhe uma bandeja com bolachas e café forte. Afetuosamente ela alisou-lhe os cabelos. Apanhado de surpresa não atinou de imediato com o motivo de tanto carinho. Ela mesma se encarregou de mostrar a razão:
O que está escondendo, Adalberto? Não confia mais em mim, somos amigos, não? Desorientado, sem saber como proceder, o olhar cravado no corpo de Conceição, que de camisola, insinuava-se, começou a balbuciar algumas palavras e numa evolução rápida articulando idéias que finalmente explodiram numa confissão, declarou:
Afundei o punhal no ventre de Tereza, talvez a polícia já saiba.
Conceição tomada de espanto ouviu atentamente o relato que se seguiu, as palavras ditas eram frias, sem emoção. Havia naquele corpo sadio de homem uma mente perversa, doente, alimentada pelo prazer da morte, do sangue.
Perplexa pela crueza, pela descoberta, os olhos de Ceição expressavam a descrença quanto às possibilidades do velho companheiro participar do seqüestro do presidente.
Ao desviar o olhar do corpo da amiga, Adalberto sentiu-se como o menino frente ao olhar da mãe. Perdido ensaiou um sorriso sem muita convicção, última estratégia na tentativa de comove - lá. Ela não se deixou enganar. Não fora criada para sentir dó ou medo.
Tudo o que sabia era que na sua frente tinha um homem, não um qualquer, um amigo, que puxou uma faca, não uma faca qualquer, um punhal, e encostou no peito da mulher desceu até o ventre com numa dança macabra e cravou na companheira, na amada. Nada justificava esse ato. Violência nunca fez parte da sua vida.
Conceição acalentava um sonho, era quase uma imagem, a chuva molhava o verde do campo, o campo de seus pais, da sua infância, de seu país, os campos de sua vida, fartura e alegria, juntas. Esse sonho foi amadurecendo junto com os companheiros do partido. Ter uma conversa cara a cara com o presidente, sensibilizá-lo, persuadi-lo, usar do poder das palavras era sua meta.
Numa arrancada súbita, Conceição se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando o passo, virou-se e pediu a chave do apartamento.
Tirem as algemas.
Quer água?
Não. Tem certeza?
Certo. Vamos ver se eu entendi direito, Sr. Adalberto.
O senhor disse que estava parado uns tempos na casa de sua amiga.
Como é mesmo o nome dela?
Conceição. Ah, é isso. Conceição. Tereza era sua esposa, correto?
Respiração descompassada, mãos trêmulas, Adalberto, olhou firmemente para o delegado e disse:

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Farol de Milha- (em três capítulos)

Capítulo I
Desligou o motor. Tirou as chaves guardou-as no bolso. Encostou lentamente a cabeça no banco, escorregou um pouco o corpo, os pés quase tocaram o acelerador. Esse incidente alegrou seu coração. Ligar novamente o motor, um pisão forte e bum... ribanceira abaixo. Quando encontrassem o carro, se o encontrassem, pensariam que foi um acidente. Mas era isso que queria? Tinha dúvidas, estrada perigosa em noites frias como esta quase impossível dirigir. Bom ter encostado um pouco, pôr as idéias em ordem. Seguir o conselho da mãe, na despedida, insistiu muito:-
Adallberto, por favor. Por favor, hein! Faça outro caminho. Quem sabe a BR 116, ou então use os faróis, aqueles, os de milha.
Mãe, eu já lhe expliquei. Farol de milha... - ela erguia um pouco o olhar, os olhares encontravam-se e ele se fechava, não falava mais.
Porque será que esse olhar exercia tanto poder sobre ele, quando criança ficava horas olhando para esses mesmos olhos, e na sua inocência de menino pensava que eram um pedacinho do mar.
Os olhos da minha mãe são azuis da cor do mar. O mar é verde, retrucava Conceição. Ele bravo gritava, na rua, na escola pros amigos:
Azul, azul, azul e azul. Ria muito.
A mãe, era uma mulher magra, pele morena, um olhar sonso e agudo. Dava-lhe surras quando o ouvia falando assim com os meninos.
Dizia que não se pode humilhar os outros. Como se fosse obrigação ter olhos claros.
Pobre moleque. Às vezes escondia-se no fundo do quintal embaixo da velha paineira. Lá, no silêncio da noite, fazia planos. Era sempre o herói alegre, sorridente, mesmo quando em suas mãos, presenciava a morte de algum dos bichos. O sangue escorrendo não o incomodava, sentia uma coisa esquisita que não sabia explicar. Mãe sim, ficava com os olhos cheios d’água. Momento mais inoportuno para recordações.
Olhou o relógio 4 horas. Logo a polícia localizaria o carro. Alguém já deveria ter encontrado o corpo. Pensamento besta. Uma noite fria dessas, impossível. Sossegou. Ligou o rádio na procura de alguma notícia, nada. Só música.
Balançou o corpo ao som do bolero, sorrindo cantarolou: “Dois pra lá, dois pra cá, a cuba libre dá coragem, a dama de lilás”... . Há quanto tempo não dançava não se divertia. Vidinha pobre.
“Dois pra lá, dois pra, cá.”, parou de repente, um estalo bombardeou sua mente Como não pensei antes, Ceição, por que não procura-lá? Certamente ela ajudaria. Era uma mulher generosa, sempre envolvida em favor das minorias, dos excluídos, como costumava dizer nos comícios acreditava na mudança, na bondade do ser humano e nessas baboseiras todas. Sempre achei isso tudo um porre.
Decidido ligou o carro, e arrancou a toda, praia de Copacabana, lembrava exatamente do prédio. Não poderia ter sido outro o local escolhido. Tudo tão à mão, o morro, saídas estratégicas, a avenida principal e acima de tudo o povo, uma gente dada à alegria, à descontração. Ideal para misturar-se, ficar uns tempos escondido até a poeira baixar. Trêmulo, sem saber exatamente o que falar, tocou a campainha, depois de um longo abraço e um breve fitar de olhos foi Conceição quem falou.
Um novo plano, dessa vez sem erros. Adalberto não pestanejou, nem poderia, instalou-se confortavelmente no velho sofá e a noite, após o jantar, dirigiu-se a uma saletinha existente no fim do corredor. Ao lado uma janelinha com cortinas brancas, um vaso verde com flores, uma mesa de madeira tentavam dar ao ambiente um clima de lar. Apartamento pequeno, simples.
È, a gente se acostuma com a pobreza, a morar em apartamentos de fundos, ficar sem ver a rua, comer pouco. Eram os pensamentos de Adalberto quando Conceição, vindo da cozinha, sorrindo, entregou-lhe um amontoado de papéis. Meio sem jeito como se ela tivesse percebido seus devaneios, esticou as mãos e começou rapidamente a leitura.
Peça chave do esquema, ela deveria afastar-se uns dias do apartamento para reaparecer no momento exato. Maneco e Luís ficariam no carro atentos ao movimento da avenida. Detalhes, nomes de pessoas, horários, gráficos, tudo devidamente organizado.
Acabada a leitura, Adalberto fitou Conceição por algum tempo, em silêncio e fechando a cara disse:

segunda-feira, 18 de maio de 2009

O descaminho daquele que conhece

...É a curiosidade, em todo o caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer, mas a que permite separar-se de si mesmo.
De que valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição de conhecimento e não, de certa maneira, e tanto quanto possível o descaminho daquele que conhece?
Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.
M. Foucault

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Uma escuta necessária

no começo eu não percebi nada sabe, é que também as coisas foram acontecendo bem lentamente, um equívoco aqui, outro ali, mas havia uma cumplicidade, e isto conta muito.
Normalmente eram quase duas horas seguidas, algumas interrupções, as posições mudavam pouco, parecia até que eu estava ali sozinha, olhando pro teto e, ouvindo o eco da minha própria voz. E estava mesmo.
Foi justamente aí que comecei a desconfiar da eficiência da coisa, eu tinha minhas dúvidas, muitas, algumas continuam. Algumas? Deixa pra lá.
Enfim eu estava numa posição confortável, e também poder falar sempre foi o melhor. Nossa como eu falava, se bem que tudo ali propiciava. Mas cheguei num ponto que não deu mais, eu passei a falar cada vez mais alto, mais alto, e tudo virava confusão.
_Doutor....... é essa aflição.
-Hã?
_A-fli-ção.
- Bom ter cão,muito bom.
_que cão? Ai Caramba. Tá tive um cãozinho. Eu, eu gosto de ficar muito tempo só. Não pelo amor de Deus, não cheiro pó. Eu sei o senhor já falou, semana passada, lucidez.
Surdez e lucidez duraram anos. Outro dia o vi descendo a mesma rua, chamei, chamei, nada.
É preciso ouvir, dizia ele. Quanta lucidez, obrigada doutor...
A surdez foi sempre minha, mas que muito do que ali se deu foi no grito, lá isso foi.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Tributo a Mantovani:

As suas palavras, que também são minhas,
e, penso eu, deveriam ser de muitos de nós:

...[...] “se eu que sou assalariado posso fazer arte o que não poderia o poder público, sempre achei tão simples, tão barato, a gente descia... o Zezé levava as tintas, seus quadros, o pessoal ia chegando, as poesias penduradas feito um varal, tudo tão lindo na tarde, uma festa dionisíaca, um ritual mesmo, pintávamos o rosto, as mãos. [...]"- (documento-acervo-oficina otelo)

Mantovani sempre foi um provocador, instigava os atores às descobertas cênicas que ele propunha em seus trabalhos, um artista completo, sua morte deixa uma lacuna, um espaço que ficará eternamente vazio na cena artística sorocabana,

à mim, deixou também, como diz o poeta, “uma saudade que corta feito aço de navalha, o coração fica aflito bate uma ou outra faia e o zoio se enche d’água”.

Mantovani 1951
08/05/2003 -6.35 h. a matéria virou luz e é toda energia.

EVOÉ MANTO,

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Seja paciente- Rainer Maria Rilke

Quero lhe implorar
Para que seja paciente
Com tudo o que não está resolvido em seu coração
e tente amar
As perguntas como quartos trancados
e como livros escritos em língua estrangeira.
Não procure respostas que não podem ser dadas
porque não seria capaz de vivê-las.
E a questão é viver tudo.
Viva as perguntas agora.
Talvez assim, gradualmente, você sem perceber,
viverá a resposta num dia distante.
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Rainer Maria Rilke nasceu em Praga em 4 de dezembro de 1875. Foi um dos poetas mais importantes da lingua alemã, participou de movimentos literários do início do século XX, como o existencialismo. É autor de "Cartas à um jovem escritor", entre outros.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Perdidos e Achados

Desço rapidamente à rua. Sinto que meus pés não estão no chão. Levito? Isso são horas para ironias. O momento não é para piadas, ainda mais, de mau gosto. Coração acelerado aperto o passo. O suor já começou a escorrer. Um tremor percorre todo meu corpo já molhado.
E se realmente perdi? Bom, se perdi posso achar.
Como era que brincávamos, mesmo?
_ São Longuinho, São Longuinho, se eu achar dou três pulinhos. Saudade da Rita, tão linda e, e nada, diacho. Malditos pensamentos, não me dão sossego, não paro de pensar. Será normal? Olha aí, cada passo um pensamento, um questionamento.
Vai ver, é assim com todo mundo. Deve ser. À semana passada, aqui mesmo na ladeira, comecei observar às pessoas andando sozinhas, o olhar distante, gestos rápidos, algumas até moviam os lábios numa animada conversa chegando até a sorrir.
Talvez estivessem a recordar uma situação passageira que eu, em minha observação, captei. Só isso.
Mas comigo penso que é diferente, meu vôo vai longe, como dizia mãe:
_Voando menino, cuidado que pode cair, hem? Mulher boa, a mãe, lembro de seus cabelos negros caídos sobre os ombros, a voz macia, o andar ligeiro, pronta pro trabalho.. Sempre fingindo não ver Rita e eu, escondidinhos, lá no milharal trocando beijos. Gostava de olhar. Era com ternura que espionava a gente.
O quê que deu em mim agora? Que nostalgia é essa? O que está acontecendo comigo? Preciso me concentrar, relembrar o trajeto feito. Como o trajeto feito? Sempre subo a 42. Será que mudei todo o trajeto e nem percebi? Como vou saber às ruas que andei? E se andei a esmo? O que é isso agora, delírio? Com andei a esmo? Basta. Não ouço mais essa maldita voz. Estou ou não no comando? Exijo de mim concentração, parar de tagarelar, silenciar esses ruídos interiores.
Os orientais dizem que os amantes nada dizem por que no seu silêncio mora um mundo, uma imagem imobilizada num momento eterno. Então a Rita nunca me amou, como falava, as juras de amor sussurrada aos meus ouvidos, os lábios a roçar-me o pescoço, os beijos ardentes, tudo tão forte, tão intenso.
Que bom que era ouvir sua voz, principalmente, quando me chamava:
_Titooo, Titooo, Vamos. Não gosto de chegar com as luzes apagadas. Íamos toda terça na sessão das quatro, único dia da semana que passava bons filmes.
Rita ficou encantada com “Passagem para a Índia”, não parava de falar, dias depois ainda comentava as cenas mais marcantes, as mais belas falas dos personagens. Seus olhos ficavam cheios d’ água, a voz embarcada.
Outro que a impressionou: “O Desaparecimento de Lorca”, com Andy Garcia no papel de Frederico Garcia Lorca. Este sim, mexeu com ela e, quando Andy Garcia/Lorca com terno branco, chapéu cinza, gravata vermelha, desceu magistralmente às escadas,chorou copiosamente.
Sabia os poemas. Ouvi baixinho, Rita, declamando Lorca. Que emoção.
Engraçado, só hoje, percebo que Rita pronunciava meu nome acentuando o “o” do Tito, como se estivesse cantando.
Será que ela queria ser cantora? Quanta se perdeu da Rita, em mim, com o tempo? E o que eu nem cheguei a conhecer? Rita pintava, nunca mostrou-me seus quadros. Também a gente nunca falou de cores, falávamos de tudo, das ondas do mar, das mais variadas espécimes animais e vegetais com seus caminhos rochosos, desertos, coníferas, dálias, girassóis, begônias, folhas das macaúbas, do canto de um rouxinol, do arganaz-do-campo, dos olhares, dos caminhos dos descaminhos. Cores nunca.
Só depois do acontecido é que soube, até guardei um quadro de lembrança. Vai ver pintava declamando Lorca.
Quer dizer então, que eu vou ficar aqui descendo e subindo a ladeira, relembrando perdas?
Lembrar-me da Rita, recordar seu jeito doce dói e, o fato não resolvido, martela na minha cabeça, a própria polícia não soube explicar.
Quanta coisa se perde nesta vida, ou não. Quantos encontros.
O que é que realmente fica em nós? Uma moringa de barro, um cesto de vime, uma chaleira de estanho, uma garrafa de vinho, toalhas brancas com dobras bem marcadas dos finos restaurantes, um guardanapo amarrotado, o tecido colorido do papel de parede, a superfície nua da mesa de madeira, os aromas, os cheiros das ruas, das casas, a morte de Rita, o documento perdido.
O vento empurra a manhã. Silenciosa profusão de coisas acontecidas.