segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Observância



Observo a xícara.
Que sinto ao observá-la?
Uma xícara.
Apenas uma xícara,
Apenas um quadro,
Apenas uma fresta,
Apenas esse som melancólico.
Apenas o existir.
O tempo parado nesse quarto.
A solidão do ser.
A certeza de ser só.
Só com o sentido das palavras.
Explicação do mundo.
E a xícara?
Branca, porcelana.
O bem - estar do chá.
A dor do pensamento.
Não cabe na xícara, não sai pela fresta.
Apenas uma xícara.
E toda solidão do mundo

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

"Olhos de cão azul"


Olhos de cão azul


Gabriel García Márquez

Então olhou para mim. Pensava que olhava para mim pela primeira vez. Mas então, quando se virou por trás do abajur, e eu continuava sentindo sobre o ombro, nas minhas costas, seu escorregadio e oleoso olhar, compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas posteriores. Depois disso a vi ali, como havia estado todas as noites, de pé junto ao abajur, me olhando. Durante breves minutos não fizemos nada mais que isto: olhar-nos. Eu, olhando-a da cadeira, equilibrando-me numa das pernas traseiras. Ela, em pé, me olhando, com uma das mãos, comprida e quieta, sobre o abajur. Via as pálpebras iluminadas como todas as noites. Foi então que lembrei o de sempre, quando lhe disse: "Olhos de cão azul". Ela me disse, sem tirar a mão do abajur: "Isso. Já não o esqueceremos nunca". Saiu da órbita suspirando: "Olhos de cão azul. Escrevi isso por todas as partes”. Vi-a caminhar em direção à cômoda. Vi-a aparecer na lua circular do espelho, olhando-me agora no final duma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar me olhando com seus grandes olhos de cinza acesa: olhando-me enquanto abria uma caixinha revestida de nácar rosado. Vi-a passar pó-de-arroz no nariz. Quando acabou de fazer isso, fechou a caixinha e voltou a ficar em pé e andou novamente em direção ao abajur, dizendo: "Temo que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas"; e estendeu sobre a chama a mão comprida e trêmula, a mesma que estivera esquentando antes de sentar-se em frente ao espelho. E me disse: "Você não sente o frio". E eu lhe disse: "Às vezes". ..

Gabriel José Garcia Márquez, a quem os amigos chamam de Gabo, nasceu às 9 horas da manhã do dia 6 de março de 1928 na aldeia de Aracataca na Colômbia, não muito distante de Barranquilla.
Alguns de seus textos foram adaptados para o cinema, como "Eréndira", de 1983, estrelado por Cláudia Ohana e dirigido por Ruy Guerra, e "O Amor nos Tempos do Cólera", de 2007, dirigido pelo inglês Mike Newell, e com a participação de Fernanda Montenegro.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Aproveitar o Tempo


Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Mílton...

Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
..................
Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?! 
 ..............

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"Diotima: do corpo do livro ao corpo do mundo"


E dobrando a esquina avistou a casa. Com o coração apertado tocou a campainha. O homem que abriu a porta tinha um olhar cansado quase não o reconheceu. Olharam-se sem nada falar.
Diotima recuperando-se entrou na ampla sala. As dores do passado abrindo caminho: os ciúmes da irmã, a mágoa pelo pai que desde cedo dera lhe a enxada como sina traçada. Tudo ganhando relevo. Tomando conta do espaço numa explosão de culpa, ódio, rancor.
E novamente a voz de Tarsila e suas estórias cheias de significado transformando tudo em volta.
Diotima já não era mais aquela mulher empertigada. Agora percebia o mundo. Compreendia o coração dos homens.
E tudo lhe faltava: o irmão morto, o vaso com tulipas, a cerca pro boi, tia Jacobina, a vida da fazenda.
Experiência singular em que Diotima abraçando o corpo do pai descobre o corpo do livro.

FIM

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"Diotima: do corpo do livro ao corpo do mundo"




capítulo 2
(em 3 capitulos)
.....transformou.
Eram tardes longas e deliciosas em que ambas sentavam confortavelmente olhando lá longe as folhas douradas das árvores caídas por todo o chão.
Tarsila lia com sua voz rouca.  Tinha um jeito de balançar a cabeça em uma outra parte do livro como que emocionada pela narrativa.
Às vezes os olhos enchiam-se de lágrimas tamanha emoção. Nessas horas, procurava os olhos de Diotima como um pedido de socorro, como alguém que pede um favor ou um copo d’água. Diotima empertigada na poltrona parecia feita de pedra.
Tarsila voltava rápido para a leitura. Não compreendia essa mulher tão amorosa. Mulher criada na roça, com a enxada na mão, só chorava quando não chovia e a lavoura ardendo na terra se perdia.
Essas imagens em sua mente. Por quê? Há tanto não pensava na irmã na sua morte repentina.
Morte sinistra, fora encontrada com o corpo todo comido pelos bichos, as folhas das macaúbas caídas sobre seu ventre disforme. Parecia um tapete de musgos e liquens.  Um convite à orgia, ao amor; o povo dizia ser coisa do tinhoso, do cão. A varanda,as leituras, aquela tarde triste quando os homens chegaram as coisas sendo carregadas no caminhão, primeiro a sopeira de tia Jacobina depois a cristaleira, os enfeites de mãe e tantos outros objetos.
Tarsila parando a leitura bruscamente olhando nos olhos do pai de cócoras no canto da sala, que feito criança, soluçara ali mesmo. Mãe só xingando. Nunca viu mãe tão brava.
Porque meu Deus? Essas lembranças justo no momento que estava decidida. Só podia ser do coisa ruim. Que fosse.
A faca em suas mãos luzindo o desejo de encravá-la de ver o sangue quente escorrendo formando uma poça e o  cheiro forte feito a boi morto. Angustia de mulher valente resgatando coisas que se perderam diluídas no tempo.
Diotima acelerou mais os passos com medo que todas essas imagens a detivessem.
E dobrando a esquina...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

"Diotima: do corpo do livro ao corpo do mundo"


   Capítulo 1
 (em 3 capítulos)

Diotima atravessara a rua com passos largos, mãos trêmulas, olhos atentos e movendo-se de um lado a outro com uma respiração ofegante.
A rua em torno era ensurdecedora. Claridade e calorão.Tudo conspirava, a loja da esquina com seu cheiro de incenso, a velha na calçada pondo os óculos.
Por um momento teve a sensação que era observada.
Na verdade Diotima nunca se acostumara com a cidade nem  com corre-corre das pessoas, o barulho, o ar sufocante.
Saia pouco. Às vezes era necessário. E também tinha os biscoitos que Jorge deixava pronto, às terças-feiras, pequenos prazeres que ainda se permitia.
O resto do tempo ficava mesmo em seu quarto. Tempo de leitura e solidão.
O quarto era iluminado, branco, paredes caiadas. Uma cama, criado-mudo o guarda-roupas, os livros. Era o que tinha e lhe bastava.
No começo quando chegou sua estranheza tinha explicação. Mundo dos símbolos e das palavras. Diotima não sabia ler. Mas agora passado tanto tempo. Como podia? Aprendeu a ler. Viu seu crescimento passo a passo, a mudança a alegria ao perceber o sentido das coisas,e, até compreendeu melhor as lágrimas de Tarsila.
A velha firmou mais o olhar tirou os óculos voltou a pô-los. Diotima tremeu pensou em desistir em voltar. Afundar-se em sua poltrona verde oliva cobrir-se com a manta tecida pela mãe, há tanto tempo, com tanto carinho.
A lembrança dessa imagem misturada à voz doce da mãe encorajou-a a seguir.
Não sem dor, mas seguir. O problema está em escolher. Sempre a escolha. Isto ou aquilo; vermelho ou azul, rosas ou margaridas.
Que importa nada lhe faltava. Gostava de viver só. Nem mesmo a morte do irmão ainda pequeno; o pai cuidando do gado sozinho consertando cerca pro boi não fugir; cortando lenha que mãe pedia mesmo sem precisão. Homem paciencioso pai.  E tia Jacobina andando a esmo pelo vale; a casa cercada de varandas e um grande céu por cima.
Nada disso afetava Diotima em sua nova vida na cidade.
Lembrou-se de Tarsila, irmã mais nova, que comprara um vaso novo com tulipas para enfeitar a varanda na esperança que tudo se transformasse. E transformou...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

da série: tenho uma amigo que disse que eu:

Acredito que as pessoas pensam como eu penso e exatamente por isso estou sempre dando com os burros nagua. Na hora não me veio nada na cabeça em resposta a esse equívoco dele. Não em relação aos burros não, imagine. Sei que não é nada fácil, lembro-me de meu avô chegando todo molhado e reclamando:
-malditos burros!
É que agora, aqui, na quietude de tudo me veio à constatação de que ele é quem vive dando murro em ponta de faca e nem falo isso pelo fato dele ser açougueiro não.
É que sente um prazer, velado, em cortar a alegria da gente, vai ver de tanto sentir cheiro de sangue, ver bicho morto foi ficando assim. Coitado.
E se tem uma coisa que aprendi com meu velho avô é que o mal se corta pela raiz.
Ah! Se na hora a resposta estivesse, fresquinha, dentro de mim teria dito em alto e bom som:
_é claro que cada pensar é um pensar, meu amigo, cada cabeça uma sentença,  mas convenhamos em se tratando do viver estamos todos querendo o mesmo. FELICIDADE!, mas é sempre assim, desgraça vem à cavalo, e rapidamente fiquei muda.
Já um outro amigo, destes que estão sempre querendo pôr lenha na fogueira, me veio com essa:
- eu se fosse você, parava com a mania de acreditar nas boas intenções das pessoas, que de boas intenções o inferno está cheio. Esse eu consegui responder na hora:
_ ainda bem que você é você e eu sou eu, almas distintíssimas, meu caro.
Não acredito, ele ainda se deu o direito de ficar ofendido. O mundo está de cabeça pra baixo mesmo. Os maldosos se ofendem com uma facilidade.
Tenho um outro amigo. Bom, não é um amigo daqueles que a gente pode abraçar, dizer que ficou com  uma baita saudade, daqueles que nem precisamos falar nada. Só a presença já basta.
Não, não é desse tipo, mas ele está vivo naquelas páginas amareladas, no livro sobre o móvel ao lado da minha cama.
Em muitas noites me deito com ele, sinto sua presença, devagarzinho cochilo, ouço sua voz suave, sua fala penetrando lentamente em mim como num ritual orgíaco.
Esse meu amigo, belo amigo, “diz que tudo que existe são encontros e a capacidade da gente afetar e ser afetado por esse encontro. Se esses encontros aumentarem nossa potência de ação experimentamos a alegria; o contrário se esses encontros diminuírem nossa potência de ação experimentamos tristeza”
E eu lá quero ser triste. Antes só do que mal acompanhado.

domingo, 8 de novembro de 2009

Imagem

O olho que me olha
          
Olha com medo.
Olha,
entreolha,
reolha.
                                               
                                     O olho que me olha                                   
olha com desdém.
olha por olhar.
O olho que me olha
olha sem ver
olha sem perceber
Que sou eu quem olha.
Olhos que não veem

  Espelho de minha imagem.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Uma conversa puxa outra... Uma idéia....

Uma coisa chama outra já dizia  minha avó. E não é que ela estava mesmo certa. A coisa aconteceu assim mesmo, meio que por acaso, bom, não vamos começar com essa coisa de:
“O que tem que acontecer acontece”. Isso dá pano pra manga. Essa era outra coisa que minha avó, também, vivia falando pelos cantos da casa enquanto cuidava de tudo. E como cuidava. Não sei por que, mas hoje ela não me sai da cabeça. Vai ver é porque era uma pessoa generosa, cheia de boas idéias, semelhante a essa “moça” que conheci “aqui " e  feito minha avó, é pura generosidade.
O fruto desse carinho todo se concretizou “e ficou lindo"   agora é só cuidarmos, colocarmos nossas idéias, de outros...outros e muitos...
Sermos generosos... saudade da minha avó.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A SIERGUÉI IESSIÊNIN

(é assim que se honra um poeta?)-

Você partiu, como se diz, para o outro mundo.
Vácuo. . .Você sobe, entremeado às estrelas.
Nem álcool, nem moedas.
Sóbrio. Vôo sem fundo.
Não, lessiênin, não posso fazer troça, -
Na boca uma lasca amarga não à mofa.
Olho - sangue nas mãos frouxas,
você sacode o invólucro dos ossos.
Sim, se você tivesse um patrono no posto (1)
Ganharia um conteúdo bem diverso:
todo dia uma quota de cem versos,
longos e lerdos,como Dorônin(2).
Remédio? Para mim, despautério:
mais cedo ainda você estaria nessa corda.
Melhor morrer de vodca que de tédio!
Não revelam as razões desse impulso
nem o nó, nem a navalha aberta.
Pare basta! Você perdeu o senso? -
Deixar que a cal morta lhe cubra o rosto?
Você, com todo esse talento para o impossível; hábil como poucos.
Por quê? Para quê?
Perplexidade.
- É o vinho!
- a crítica esbraveja.
Tese: refratário à sociedade.
Corolário: muito vinho e cerveja.
Sim, se você trocasse a boêmia pela classe;
A classe agiria em você, e lhe daria um norte.
E a classe por acaso mata a sede com xarope?
Ela sabe beber
..............................................................
...................
Agora para sempre tua boca está cerrada.
Difícil e inútil excogitar enigmas.
O povo, o inventa-línguas,
perdeu o canoro contramestre de noitadas.
E levam versos velhos ao velório,
Sucata de extintas exéquias.
Rimas gastas empalam os despojos, -
é assim que se honra um poeta?
-Não te ergueram ainda um monumento -
onde o som do bronze ou o grave granito? -
E já vão empilhando no jazigo
dedicatórias e ex-votos: excremento.
Teu nome escorrido no muco,
..........................

Por enquanto há escória de sobra.
0 tempo é escasso -
mãos à obra.
Primeiro é preciso transformar a vida,
para cantá-la -em seguida.
Os tempos estão duros para o artista:
Mas, dizei-me, anêmicos e anões,
os grandes, onde, em que ocasião,
escolheram uma estrada batida?
General da força humana-
Verbo - marche!

Que o tempo cuspa balas para trás,
e o vento no passado só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo o planeta está imaturo.
É preciso arrancar alegria ao futuro.
Nesta vida morrer não é difícil.
O difícil é a vida e seu ofício.


Vladimir Maiakovski- Tradução de Haroldo de Campos

1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.

2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin .

domingo, 1 de novembro de 2009

Travessia

Quando!fêz-se noite em meu viver/vou fechar o meu pranto...