sexta-feira, 30 de abril de 2010

"Um eu é pouco"


"Je est un autre", escreveu Rimbaud em carta a Georges Izambart (I871), mais tarde conhecida como a carta do vidente. Definindo o Eu como outro, o poeta colocava no Eu a origem da alteridade. Também poderia ter dito: no Eu se esconde o outro ou o outro se desdobra do Eu. Não se trata de fantasia de poeta, mas de uma visão poética sobre quem eu sou. Eu não sou uma identidade sem fissuras, porque a consciência que tenho de mim mesmo está sempre à beira de um desdobramento e, por vezes, de borbulhante multiplicação. Houve um poeta moderno, Fernando Pessoa, que se viu ou ouviu como uma multidão de vozes ou como um polipeiro de consciências. Um eu é pouco. É preciso sentir como várias pessoas.
Desse ponto de vista, a identidade pessoal seria um fingimento de ser, a menos que, seguindo Heidegger em Ser e tempo, pudéssemos concebê-la como detenção do fluxo temporal, o que implica admitir uma relação estrita da alteridade com a temporalidade. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades", reza um verso de Camões. No foco do tempo presente articula-se o instante cartesiano do pensamento.
Penso, logo existo enquanto penso; existindo enquanto penso, ganho a condição de sujeito pensante, que também pode chamar-se de espírito ou razão.

A questão do outro em Heidegger
Benedito Nunes
título no blog e pesqquisa
sueliaduan
Escrever e ser
O escritor torna dizivel o que não se sabia dizer
Olavo de Carvalho

terça-feira, 27 de abril de 2010

Menino a sonhar

Na árvore colher o fruto.
Deliciosamente a polpa doce
Escorre pelos cantos da boca.
Refresca, alivia.
A língua tornar a se deliciar.
Descer, correr.
Correr, brincar.
Menino a sonhar
Cedinho em alto mar o balanço da canoa.
Rede e pescar,
À tardinha voltar.
Peixe frito, peixe assado.
Menino a sonhar.
Na roça o milho plantar.
A enxada bater a terra revolver.
Colher da espiga.
Lenha, roda, fogueira.
São João! São João!
Balão.
Menino a sonhar.

Na cidade não se tem idade.
Na lida todo dia se ganha a vida.
Compra fruta.
Compra peixe.
Compra milho.
Não sobe mais na árvore,
Não vai mais para o mar,
Não sente o balanço,
Não pula fogueira.
Não brinca, não vê.
Não é menino a sonhar.
Bicho homem parado.
Acomodado.
Trabalhar, Trabalhar.
O tempo passar.
Mas o homem precisa viver.
Feito a um pássaro livre
Caminha.
Caminha a pensar:
Chega de só trabalhar
E o dia amanheceu em paz.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

O Olhar da Sedução

O que se diz de imediato sobre a sedução é que é um jogo. Caçada silenciosa entre dois olhares; captura numa rede perigosa de palavras. Jogo arriscado e fascinante ─ angústia e gozo ─ onde o vencedor não sabe o que fazer de seu troféu e o perdedor só abe que perdeu seu rumo; um jogo cuja única possibilidade de empate se chama amor.
Essa abordagem parte do ponto de vista do aparente perdedor ─ o seduzido─ já que é ele quem nos deixa registro sobre sua experiência. É o seduzido que se expressa ─ na poesia, na literatura, nos consultórios de psicanálise. É o seduzido que tenta compreender a transformação que se deu nele ao mesmo tempo em que tenta entender o poder do olhar sedutor. O que significa Odete para Swann? De que encanto o seduzido é presa, ele não sabe dizer. O sedutor é o que não revela. Mas revela alguma coisa ─o quê? ─ sobre o seduzido.

“Ai ioiô... eu nasci pra sofrer/fui olhar pra você, meus olhinhos fechou./ E quando os olhos eu abri/quis gritar, quis fugir/mas você, eu não sei por quê/você me chamou”... Que o seduzido está fascinado por alguma espécie de perigo, é certo. O risco mais óbvio seria o do abandono ─ “seduzido (a) e abandonado (a): não é assim que se diz? Mas ainda falta saber por que o abandono parece se inscrever sempre na experiência da sedução ─ e em que lugar tão ermo o seduzido é deixado, que lugar tão inóspito e este em que ele se sente como se estivesse sendo deixado para morrer.
A experiência da sedução é diferente da do apaixonamento ─ embora uma contenha a outra, e vice-versa! E bem mais diferente da experiência do amor que conta com a reciprocidade, com a entrega mútua onde dois caminham juntos por terrenos mais ou menos (mais no menos!) conhecidos O seduzido não sabe onde pisa─ e pensa que o sedutor sabe. Antecipa prazer e dor, pois, ao mesmo tempo em que espera o gozo prometido pelo sedutor, já sabe que se aproxima uma catástrofe. O seduzido é alguém que perde o rumo e tem que se guiar, nas brumas de uma infância revisitada, pela bússola do olhar sedutor.
Não se pode dizer que o seduzido ame o sedutor ─ ele é seu prisioneiro. Talvez odeie mais do que ame ─ “mas não deixo de querer conquistar/uma coisa qualquer em você/que será?” A conquista do sedutor é a esperança de libertação do seduzido, já que o sedutor parece possuir a chave dos enigmas que o aprisionam: o que você vê em mim que eu não vejo? O que você sabe de mim que eu não sei? O que você deseja em mim que eu não domino, ao mesmo tempo em que o seu olhar me diz que eu não possuo? Que dom seu olhar tem o poder de criar em mim para o seu desejo?
Escravidão da sedução: eu só possuo o dom para o seu desejo enquanto você o vê em mim. Sou eu escravo ─ou não sou nada. E o poeta seduzido suplica: ‘Oh minha amada que olhos os teus/quem dera um dia, quisesse Deus/eu visse um ida o olhar mendigo/ da poesia nos olhos teus” ─ sabendo que o olhar mendigo da poesia é o seu próprio; implorando a algum deus a graça de ver este olhar pedinte no rosto da amada, pois quem pede se revela: revela carência. Se o olhar da amada mendigasse, deixaria de ser inacessível, indecifrável, “ cais noturno cheios de adeus’. O poeta conhece o naufrágio da sedução.

"Masculino /Feminino: O Olhar da Sedução" Maria Rita kehl -
Do livro “O Olhar” Adauto Novaes...
pesquisa: sueli aduan

segunda-feira, 19 de abril de 2010

da série: Tenho um amigo que disse que eu:


Não deveria ficar espantada com as mentiras que ouço, e que ele realmente não entende o porque dessa minha perplexidade. E sorrindo completou: ─ são as chamadas “mentiras brancas”. São delicadas e não prejudicam ninguém, além de extremamente necessárias para que o sujeito, o dito mentiroso, tenha alguns momentos de descontração, sinta-se poderoso e impressione os amigos, mas principalmente os inimigos. Na hora eu não consegui falar nada. Ele tinha lá sua razão. Por favor, não me entendam mal, refiro-me ao meu espanto com essas, e muitas outras coisas ditas delicadas, necessárias e que não prejudicam ninguém. Eu realmente já deveria ter me acostumado. Será? Quem garante que não prejudica  ninguém. A mim prejudica sim, e muito. Eu lá tenho tempo a perder.
Já um outro amigo disse que não se trata de perder tempo, mas de algo ainda mais profundo. Como se eu não soubesse discorreu horas e horas sobre a questão. Percebi que eu não sabia mesmo. Ele, um grande mestre, acabou me ensinando. Com um olhar generoso e um coração largo, próprio dos que dizem a verdade, me disse: ─ veja bem, minha cara, a palavra “mentir vem do grego pseudomai, enganar com mentiras, e, do hebraico Kahas “negar”. Podemos entender, então, que aquele que mente, está negando sua essência verdadeira, ou seja, ser o que realmente se é”.
Confesso que não fiquei perplexa com essa fala, mas infinitamente triste em saber que há muita gente assim, e, que até convivemos com algumas delas. Isso não passou despercebido pelo meu amigo que delicadamente me abraçou. Um abraço verdadeiro. Essa sim uma delicadeza necessária.
Já um outro amigo, desconfiado por natureza, mas um filósofo humano demasiado humano, diz que não se trata disso ou daquilo, mas que é uma questão de saúde mesmo. E que quem conta uma mentira raramente nota o fardo que assume; pois para sustentar uma mentira ele tem que inventar outras vinte.
E que a principal mentira é aquela que contamos a nós mesmos.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

A poesia associa-se à inteligência crítica

... Assim como a antiga cidade tinha configura um novo ambiente para o poeta, fazendo nascer à poesia lírica na Grécia Antiga, é outra vez a cidade que vem dar novos contornos ao modo como sujeito se relaciona com o mundo objetivo: agora, mais do que nunca, substitui aquela onipotência de um sujeito heróico, narrador do mundo e das peripécias dos homens, pela relatividade do mergulho na subjetividade.
Mas ao contrário do poeta romântico, que ainda acredita na poesia como expressão do “eu”, o poeta moderno sabe perfeitamente que qualquer recorte do mundo será apenas linguagem e não lhe é possível mais do que isso: o poeta moderno se vê projetado no mundo exterior, sabendo que desse mundo poderá apenas fazer uma tradução parcial.
A idéia de arte como fatura, que aparece nos textos de Edgar Alan Poe (“Filosofia da composição” e “O princípio poético”), foi fundamental para seu tradutor francês ─o pré-simbolista Baudelaire (1821-1867) ─,o primeiro poeta moderno a sistematizar o poema como relações entre sons, ritmos e imagens, como aparece no soneto:
Correspondências”, metaforicamente referidas à natureza:
como longos ecos que de longe se confundem
numa tenebrosa e profunda unidade,
vasta como a noite e a claridade,
os perfumes, as cores e os sons se correspondem.

Baudelaire é o poeta que reconhece a nova cidade e o homem das multidões: um texto crítico importante é o que escreveu sobre “O pintor da vida moderna”, onde incorpora a seus conceitos estéticos os dados dos novos tempos das metrópoles, abandonando o interesse pelo Belo absoluto para ater-se ao Belo Transitório. ‘Há na vida trivial, na metamorfose jornalística das coisas exteriores, um movimento rápido que ordena ao artista uma igual velocidade de execução’, diz ele.
Deixando de lado os grandes pintores como Delcacroix, Daumier, Coubert, escolhe um pintor menor, Constantin Guys, para falar do artista como homem do mundo, homem das multidões. Citando um pequeno diálogo que teve com Delacroix, acerca da predisposição curiosa em observar o novo ─ seja ele rosto ou paisagem, luz,,cores ou roupas ─, acaba caracterizando a modernidade como uma capacidade para extrair o “eterno do transitório”. Apontando os rumos da pintura, Baudelaire preconiza o impressionismo e afirma que a modernidade está também no próprio código usado pelo artista.
Tanto em Poe como em Baudelaire a poesia associa-se à inteligência crítica. Mas modernidade para Baudelaire é ainda mais: é também a possibilidade de transformar em poético tudo aquilo de artificial, grotesco e feio que a grande cidade pode oferecer ao artista ─ o caminho para uma “estética do feio”.

O lirismo moderno
Salete de Almeida Cara
pesquisa /sueliaduan

quarta-feira, 14 de abril de 2010

São flores e varandas, Janelas.

Da janela do meu quarto avisto,
como num quadro,
variadas cores,
que pouco distingo,
entre o rosa e o creme.
são casas próximas
com varandas, cadeiras,
vasos, flores,
às vezes, alguém lendo.
O que será que lê esse sujeito que não conheço.
Que mora duas quadras da minha janela
O que senti ou nem senti
O que percebe?
O que sabe da vida?
Do mundo?
De mim?

Clic! Abro outra janela.
Esse sujeito eu conheço.
Conheço?
Quem o saberá?
Eu? Ele?
O que senti?
Eu? Ele?
O que sabe da vida?
 Do mundo?
De mim?
Não sabe, não sei.
São cores de um quadro
Quadros da mente
Mente que mente
Leitura, flores, varandas.
Clic! Desligo

sábado, 10 de abril de 2010

Em pequenos goles...


(...) Quem vive para a poesia deve ler tudo. Quantas vezes, de uma simples brochura, jorraram para mim a luz de uma imagem nova! Quando aceitamos ser animados por imagens novas, descobrimos irisações nas imagens dos velhos livros. As idades poéticas unem-se numa memória viva. A nova idade desperta a antiga. A antiga vem reviver na nova. Nunca a poesia é tão uma como quando se diversifica.
Que benefícios nos proporcionam os novos livros! Gostaria que cada dia me caísse do céu, a cântaros, os livros que exprimem a juventude das imagens. Esse desejo é natural. Esse prodígio, fácil. Pois lá em cima, no céu, não será o paraíso uma imensa biblioteca?
Mas não basta receber, é preciso acolher. É preciso, dizem em uníssono o pedagogo e a dieteticista, “assimilar”. Para isso, somos aconselhados a não ler com demasiada rapidez e a cuidar para não engolir trechos excessivamente grandes. Dividam, dizem-nos, cada uma das dificuldades em tantas parcelas quantas forem necessárias para melhor resolve-las. Sim, mastiguem bem, bebam em pequenos goles, saboreiem versos por verso os poemas. Todos esses preceitos são belos e bons. Mas um princípio os comanda. Antes de qualquer coisa, é necessário um bom desejo de comer, de beber e de ler. É preciso ler muito, ler mais, ler sempre.
Assim, já de manhã, diante dos livros acumulados sobre a mesa, faço ao deus da leitura a minha prece de leitor voraz: “A fome nossa de cada dia nos daí hoje...”.

A Poética do Devaneio
Gaston Bachelard

domingo, 4 de abril de 2010

DENTRO DO PEITO


Aonde o sopro do amor irá guiar os meus passos? Aonde que não na direção dos teus braços
Aonde pode a canção raiar com toda a grandeza . Senão nos olhos de quem retém sua beleza?
Sopro de Amor
Lenine

Com as mãos trêmulas em volta do copo sentei-me para tomar o remédio, mas não consegui. Sozinha na cozinha minha única distração era olhar as figuras que iam se formando na parede, e olhar a vela já no finalzinho. Noite escura uma pergunta martelava em minha mente: ─ Beber por quê?
Era sempre assim: — quando as dores fortíssimas no estômago apareciam, seguidas de calafrios, ficava a me questionar se valia à pena tomar o remédio ate que finalmente o sono me dominava.
Toda vez era a mesma coisa parecia uma ladainha, uma reza mesmo: — tomo ou não tomo o remédio, já nem me lembro mais quanto tempo passou da última vez que meu estômago doeu. Mas nessa noite doía de um jeito diferente. Uma agulhada fininha, seguida de um calor por todo o  corpo , e uma imensa tristeza, um não querer fazer nada, não me mover. Só ficar ali mesmo sentada olhando a vela, a chama tremulando e as figuras na parede.
Quando fui ao médico, e relatei como me sentia, ele sorriu. Um sorriso estranho. Sabe aquele entortar dos lábios puxando pra um dos lados. O sorriso do desprezo foi o que senti. Decidi que nunca mais iria ao médico falar sobre essa dor. Não precisava. É que no fundo eu sabia: — essa dor vinha dos meus pensamentos lá que ela nascia, então, eu me aquietava. Às vezes chorava um choro baixinho é que dentro do meu peito a imagem do teu sorriso doce, teus cabelos negros, teus olhos profundos fizeram morada.
E a vela no finalzinho.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

"Onde estamos e somos"


Falar do amor em Platão cria uma inevitável circularidade. Dela não podemos fugir: o próprio Platão não nos deixa escapar. É que, em Platão, amor e fala, amor e discurso, amor e palavra estão intrínseca e definitivamente interligados. Há, para Platão, cumplicidade entre Logos e Eros. Para sermos mais corretos: existe estreita vinculação entre as diversas formas de amor — múltiplas figurações de Eros e as respectivas linguagens que falam do amor e com que o amor se fala. Os discursos amorosos retratam as várias faces de Eros.
Mais para Platão, como se vê em O banquete, o tema do amor vem de muito longe, sua origem se perde em insondáveis tempos remotíssimos, jamais presenciamos seu começo. O que dele temos, na verdade, é a série descontínua de falas ou variações na qual entramos sempre tardiamente: seqüência fragmentada de múltiplos e heterogêneos discursos, esfacelado por falhas, hiatos, silêncios. Nunca um discurso inteiro e contínuo, mas retalhos dispersos, discursos díspares e descosidos. Nunca um mesmo e único discurso: falta começo como lhe falta continuidade. Se o tema provém de eras recuadas, o que obtemos ao tentar resgatar seu passado e recontar sua história são sempre lembranças. Por outro lado, como, sugere o Fedro, o amor é tema que não se encerra nem se exaure: apesar de permanentemente retomado, permanece inconcluso, aberto à possibilidade de novas variações. Eis porque sem a apreensão de seu início, sem a visualização de seu final do tema do amor temos somente o meio, seu dilacerado meio onde estamos e somos: os inúmeros e às vezes antagônicos discursos amorosos, onde fatalmente tentamos inserir nossa fala particular e provisória.

Platão: As várias faces do Amor - "Os sentidos da Paixão"
José A.M.Pessanha
Pesquisa e título no blog: sueliaduan