sexta-feira, 24 de junho de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu...



Tenho que ser mais flexível, pois nem sempre as pessoas entendem um tipo como eu. Nossa! Como assim um tipo como eu? Percebi que ele ficou embasbacado com a minha pergunta. Não esperava, por certo. E respondeu à queima-roupa. É isso. Você faz cada pergunta.

Já outro amigo disse que não é nada disso. O problema não está na pergunta, ou melhor, nas perguntas, pois devemos sempre questionar. Se iremos encontrar respostas são outros quinhentos. Como assim outros quinhentos, perguntei sem pestanejar. Viu como estou certo, argumentou meu amigo que mal esperou o outro completar a frase. E lá ficaram os dois a confabular sobre minha esquisitice.

Foi quando entrou meu amigo das horas certas o qual, tanto eu quanto você, caro leitor, aguardamos na expectativa de que, com sua sabedoria peculiar, coloque um fim nessas saudáveis discussões entre amigos. E ele foi logo dizendo: — não há nada de estranho em ser como se é. E eu não podia deixar por menos. Como assim dá para ser como não se é?  Ele, com os olhos lagrimejando de tanto rir, respondeu: — sim, é a chamada pseudo-esquisitice. Agora sou eu quem está com os olhos lagrimejando de tanto rir, pois sou verdadeiramente esquisita.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Eu sei...


 A vida sempre está por um fio. Eu sei e você, caro leitor, também o sabe. Essa frase, lugar comum, clichê como tantos que esquecemos no corre-corre da vida moderna e só muito remotamente ousamos olhá-la de frente. Talvez por sabermos de nossa impotência, nossa precariedade frente aos mistérios do viver. Mas há dias que esse mistério, sem pedir sequer licença, sorrateiramente se instala em nosso coração.

Foi de manhãzinha, como de costume caminho até a rodoviária, o trajeto não é longo e a beleza predomina — jardins bem cuidados, flores das mais variadas, ipês amarelos, roxos. Sigo totalmente indiferente aos passantes, ao movimento da avenida, e quando dou por mim estou dentro do ônibus comodamente sentada pronta para apreciar outras belezas da estrada. E meu olhar se detém em pequenos riachos, nas plantações, nos sítios, o gado no pasto. Um homem com sua enxada, roupas nos varais, verde muito verde a perder de vista.

E, lá no fundo girassóis pequenos, grandes, balançando ao vento, imponentes, majestosos. Meus olhos, como num passe de mágica, se enchem desses pequenos sóis, meu pensamento viaja na velocidade da luz. Já não estou não sou. Tudo agora são imagens. Imagens de quando eu não mais existir. Pensamentos de que eu posso não voltar. Um acidente e a morte como fato consumado. A casa que ficou para trás, o cachecol que não terminei, o poema inacabado, o almoço aos domingos, as risadas dos filhos, os gatos, os amigos, o bar, o ir e vir, a alegria de ser. Agora não é nada.
E tudo era tão real.


 

domingo, 5 de junho de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu


Deveria é ser mais grata na vida e estar muito das contentes, qualquer mulher no meu lugar estaria. Bem, pensei com meus botões: — primeiro eu não sou qualquer mulher e segundo, que estória é essa de ser grata. Grata eu fico quando alguém me faz uma gentileza, mas isso pelo amor de Deus.

Já um outro amigo, que acabava de chegar, foi logo perguntando :— o que é esse “mais isso” ou seria “menos isso” ou eu quem escutou mal? Diante disso, eu só podia rir mesmo. E aquele meu rizinho, que começa no canto da boca, vai abrindo lentamente e preenche todo meu rosto. Ele, percebendo que por trás dessa alegria toda havia uma grande bronca, ficou todo curioso. Mas eu não estava pra prosa, não. E me calei.

Foi quando meu bom e velho amigo entrou, e conhecedor desse rizinho foi logo perguntando: — qual a indignação dessa vez, hein? Ah! Eu não podia ficar calada, não. Amigo, como esse é raro. A gente sente aquela vontade danada de se abrir, falar o que vai lá no fundo do coração. E, assim como quem conta uma estória, fui logo falando: — Ontem alguém que não conheço. Nunca vi. Não sabe de mim, nem eu dele, escreveu e pelo tipo era Arial 12. Que sou bonita e que me admira.

Não pude deixar de refletir, como diz o sambista, com uma baita duma reiva, — Me admira porque sou bonita? Falei isso olhando nos olhos do meu amigo, que nesse momento me olhava profundamente. Senti que para ele eu era belíssima, mas que jamais tinha me admirado por isso, ou melhor, só por isso.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

"Eu Que Aprenda a Levitar''

 
"O sofrimento existe até na música. Basta reparar. Os instrumentos mais primitivos trazem a sua marca visível: as flautas são feitas de ossos, as cordas de intestinos, tambores são feitos de pele, as trompas e as cornetas de chifres. Todos os instrumentos são, na sua origem, testemunhos sangrentos da vida e da morte.”
 José Miguel Wisnik.

Além de compositor e ensaísta, é professor de literatura brasileira na USP, conversou com o público (Sorocaba) sobre o impacto das crises individuais. Para ele, cair é efeito da gravidade, daquilo que é pesado. Mas e se, em resposta a um corpo que cai, tentarmos voar, levitar? Talvez isso seja possível ao aproximar-se das possibilidades indicadas pela arte, que tantas vezes contrapõe certa leveza profunda a tudo aquilo que é pesado e superficial, acredita o compositor. Ele, que entende o mundo como barulho e silêncio, afirma: Se meu mundo cair, então caia devagar. Não que eu queira assistir, sem saber evitar. Cai por cima de mim: quem vai se machucar, ou surfar sobre a dor até o fim? Cola em mim até ouvir coração no coração. O umbigo tem frio e arrepio de sentir o que fica pra trás até perder o chão. Ter o mundo na mão sem ter mais onde se segurar. Se meu mundo cair, eu que aprenda a levitar.

Wisnik é professor de literatura brasileira na USP, compositor, ensaísta, autor dos livros Sem Receita - Ensaios e Canções (PubliFolha), Veneno Remédio - o Futebol e o Brasil (Companhia das Letras), e do CD Pérolas aos Poucos, além de trilhas para cinema, dança e teatro.


Veja mais:
http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/12/01/integra-eu-que-aprenda-a-levitar-jose-miguel-wisnik/