quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Campânulas Vermelhas...


Na primeira parada deixou claro, feito à lua que iluminava aquelas viagens sem fim, que só é gente aquele que não careça de nada, que a tudo agradece ao nosso senhor Jesus Cristo e na dor enxerga a bondade divina. Sua voz doce é um canto de ninar aos ouvidos da mulher em que hoje me transformei. E trago comigo, como num cofre, cada uma dessas paradas.

Essa sempre foi a palavra de mãe:- descansar. Como se a gente pudesse tirar o cansaço do jeitinho que se tira um chinelo e deixa ao canto. Mãe acreditava nisso e dizia: — Ponhei meu zoio nu sem fim da mata e junto com o chero bão sinti um repio nu corpu. Não careçe de coisa mio não. Mas eu carecia. E o cansaço era só daquela vidinha mesmo. Eu gostava sim do cheiro do mato, da chuva e daquelas tarde de domingo, em que pai sentado na varanda contava histórias, e mãe sempre nos surpreendia com seus doces e manjares. A vida era assim tranqüila por demais.

E se tem coisa que trago desde minha meninice e o gosto pela aventura. Descobrir, conhecer, saber. Mãe nunca entendeu esse meu jeito, mas mulher amorosa que era sempre respeitou minhas escolhas. Em seu silêncio eu sentia carinho e aprovação, pois ela sabia: — a vida toda seria assim para mim. Na estrada, hoje, em meio às campânulas vermelhas, samambaias, avencas e o cheiro da terra molhada, sua imagem, seu canto doce seu silêncio misturaram-se as minhas alegrias.
Não careço de nada,por ora.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um olhar poético na prosa de Clarice Lispector


"Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está  aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever"
Clarice Lispector

Um olhar poético na prosa de Clarice Lispector", título de uma oficina que ministrei em 2003, na Oficina Cultural Grande OTELO, uma emoção, uma honra , um grande aprendizado, pois seus livros oferecem um mergulho no indivíduo - o ser particular. Olhar arguto e sem condescendência, mas carregado de afeto, sobre nossas mazelas, contradições, medos e gestos de amor e grandeza.

O que buscamos na oficina foi captar esse olhar , o momento poético, registrá-lo, vivenciá-lo. Perceber em que medida as personagens de Lispector nos incitam à viver nossa cotidianeidade como homens e mulheres inseridos numa identidade global ainda que únicos, singulares.

E esse ano, na direção da Cia Travessia-  O ato de ler um encontro com o outro - Sarau Lítero -Musical", inseri no projeto um conto de Lispector, "Felicidade Clandestina", interpretado pela atriz Quitéria Maria. Belíssimo momento do espetáculo.

..."Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada"
Clarice Lispector
( e eu)
(rs)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

De silêncios, sustos e olhares.

 
Tomou-me tempo e desânimo aquela viagem, mas era uma questão de escolha. E não tem jeito, a gente já sabe, o coração fica apertado mesmo. Além do esforço que era obrigada a fazer para que meus olhos não se fechassem, havia a questão da pouca luminosidade. Mas fazer o quê? Fui informada que seria assim. Voz doce a sussurrar em meus ouvidos: — Mire, veja... Mire... veja.

Do momento em que eu, confortavelmente, me instalasse na poltrona as mudanças ao meu redor seriam imperceptíveis. Uma longa jornada feita de silêncios, sustos e olhares. No começo, o medo me dominou. Sentia a respiração ofegante, o suor escorrendo pela testa, mas em momento algum pensei em desistir. O jeito era fechar os olhos, relaxar e assim, quem sabe, ao olhar novamente o medo tivesse se dissipado. Não importava quantas vezes isso se daria.

E tive a nítida sensação que seria a vida toda. O espelho que firmemente segurava entre minhas mãos trazia um esboço do meu rosto, um quase rosto. Através dos espelhos comecei a procurar-me. Eu por detrás de mim à tona dos espelhos. E aos poucos, uma imagem ia se formando. Já não era mais um quase, mas uma forma luminosa de um rosto que se sabe.