sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu


Escapo, feito água, pelos vãos dos dedos. Será que ele pensa que eu quero estar entre os vãos dos dedos de alguém, entrelaçada? Não, penso que não. Ele me conhece pouco, mas conhece, e já percebeu que sou menos líquida e mais rarefeita, solta.
Já um outro amigo disse que não é nada disso, que nem líquida, nem rarefeita, que sou sólida, feito pedra. Desejo de brilho. Na hora, juro que levei um susto. Não imaginava que alguém me visse assim, sempre tive a vaga sensação de que sou vista como um vento forte, desses que traz tempestade, derruba portas e janelas, desnuda todos e tudo, mas que no fim deixa tudo limpo.
Já um outro amigo, desses que enxerga em cada um a natureza toda, disse que eu derramo, não feito água, mas em palavras, e que por isso mesmo não gosto de entrelaçar, ficar presa, que transbordo em versos livres, que não caibo em mim porque sou múltipla.
E eu sorri levemente, mas eis que chega meu amigo, amigo de longa data, conhecedor profundo do que trago no peito, olhando-me fundo nos olhos disse que eu sou líquida na paixão, sólida como uma flor na terra, etérea junto ao corpo amado. Então suas palavras ecoaram na sala, testemunhando o que há muito eu já vivia, a paixão de ser como se é.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

KOA´E -

Livro: KOA´E
Autor: Luís Serguilha
Capa: Aquarela de Ivani Ranieri

Música ocular de Serguilha
Marcelo Moraes Caetano
Escritor, crítico literário, doutorando em literatura comparada
(Julia Kristeva,Universidade Sorbonne)

A obra de Serguilha não teria subjacentemente, o papel de elo entre a matéria clássica e exata e a nova matéria arquetípica e antiqüíssima das físicas e matemáticas inexatas e a filosofia, a teologia e as artes? Teoria-ontologia-TEOLOGIA?Acaso não se percebe, nos significantes e na sua emergência, em Serguilha, uma harmonia desarmônica e/ou enarmônica entre Ciência, Teologia, Artes e Filosofia? Definitivamente, sim. Em outras palavras, assim como a gênese da física quântica aponta para um aparente paradoxo e pressupõe o conhecimento do classicismo em termos de física (a mecânica e a álgebra, aritmética e geometria clássicas) assim também são os significantes de Serguilha: buscam no Arché clássico a plenipotência para transcender-se a mecânica e, mecanicamente, ir ao estado de ondulações em que o que está em pequena escala se comporta de modo diferente do que está em grande escala, mas de modo que, exatamente por sua diferença, os iguala nisto: o universo é diferença e só na diferença das diferenças (a arquimetalinguagem vista por outro telescópio ou por outro microscópio?) sobrevive a plenitude a que se chega pela música ocular de Serguilha
Eis o poeta em seu vôo cósmico
Sueli Aduan

Ler Serguilha é como adentrar a mata densa na origem dos tempos, a lua já alta, trazendo consigo o cheiro da terra molhada, de flores minúsculas, de ervas do campo, de girassóis distantes, de sons e silêncios. Ouso dizer que não o lemos com os olhos, mas com o corpo todo numa vibração frenética, solvendo cada palavra, signo dos signos, imagem das imagens, correspondências que nos fala Baudelaire, cheiros e cores, vida e morte, forma da formas. Eis o poema, eis o poeta, eis o corpo. E no corpo do homem a linguagem. Linguagem essa que é a busca desse poeta, incansável em sua trajetória, em seu mergulho no inexprimível, no indizível, no desconhecido, na gestação obscura para procurar a sua origem, o seu silêncio, sempre num processo regenerador, mitológico. O sonho poético reanimando o mundo das primeiras palavras como sugeriu Bachelard e que com propriedade completaria: “No sonho cósmico nada fica inerte, nem o mundo nem o sonhador. Tudo vive uma vida secreta de que tudo fala sinceramente”. A mesma propriedade do poeta Luís Serguilha, que vestido da leveza de quem anda descalço pelas areias da praia e sente o fino grão tocar-lhes os pés, nos diz: apenas tento enfrentar o infinito, a indeterminação, o não-sentido, com a respiração do desejo e da transgressão imaginária. Nessa sua caminhada em que muitos, como eu, buscam de longe acompanhar na ânsia de que pequenas gotas do mar que é Luís Serguilha venha refrescar nossos corpos sedentos de fusão libertadora, da vida verdadeira, que está ausente, relembrando Rimbaud. Com palavras que são travessias da dança cósmica, Serguilha vai nesse movimento equilibrado perpetuando sua escritura, palavras grávidas de símbolos. Linguagem viva e criadora, pulsares de paixões, o sonho dos signos, o sonho das células, o sonho dos amantes, no falar de Novalis. Serguilha sabe que é preciso conviver com o poema inteiro, com seus ritmos pulsando, com as iluminações de suas imagens, com as estruturas e suas geometrias, com as conteslações de seus significados, os múltiplos sentidos tão belamente expostos nos poemas de Quintana, e que muito provavelmente o poeta português tenha conhecimento, ainda com escritas tão díspares. Construtores da palavra, tanto um quanto outro, Quintana com seu verso: “Os poemas são pássaros que chegam não se sabe de onde e pousam no livro que lês”. Poemas – Borboletas, Mario Quintana. E Serguilha em seu vôo cósmico, Condor feito homem, homem poeta na dança da noite e do dia que está para nascer.

LUIS SERGUILHA nasceu em Vila Nova de Famalicão, Portugal. Poeta e ensaísta, suas obras são: O périplo do cacho (1998), O outro (1999), Lorosa´e Boca de sândalo (2001), O externo tatuado da visão (2002), O murmúrio livre do pássaro (2003), Embarcações (2004), A singradura do capinador (2005), Hangares do vendaval (2007), As processionárias (2008), Roberto Piva e Francisco dos Santos: na sacralidade do deserto, na autofagia idiomática-pictórica, no êxtase místico e na violenta condição humana (2008), KORSO (2010), Possui textos publicados em diversas revistas de literatura no Brasil, na Espanha e em Portugal. Alguns dos seus textos foram traduzidos para o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão e catalão.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

"O Compadre da Morte"- Um belo espetáculo-


Com um elenco primoroso, um figurino impecável, e contando com a direção de movimento de Merlin Kern, mais a preparação vocal de Edmo Perandim, e a produção: de Richard Santos, O espetáculo “O compadre da Morte”, texto e direção de Mario Pérsico, vem provar a máxima que estudo, disciplina e dedicação são ingredientes fundamentais para que o sucesso aconteça.
E, mais uma vez a Cia. Clássica de Repertório presenteia a cidade de Sorocaba com um belíssimo trabalho, marca registrada dessa trupe de atores, atrizes, pesquisadores, produtores, músicos pessoas realmente comprometida com a arte cênica.
Tive o privilégio de acompanhar alguns ensaios e pude observar o rigor com que o trabalho é executado. A começar pelo horário cumprido a risca, as pequenas pausas, a troca de idéias, o debate, e por fim o ensaio propriamente dito de horas e horas ininterruptamente.
O Compadre da Morte surge, diz Mário Pérsico: — para a CIA CLÁSSICA DE REPERTÓRIO como um aprofundamento de uma pesquisa sobre o universo mítico do caipira, das lendas e causos extraídos do folclore brasileiro. Pesquisa esta que começou no ano de 2006, com o Projeto “De Feiras de Muares à Revolução Industrial”, quando a Cia. Clássica de Repertório foi agraciada com o Prêmio Funarte de teatro Myriam Muniz.
O Projeto, como um todo, é um resgate dessa cultura partindo-se de lendas e causos que povoam o inconsciente brasileiro. O texto nascido dessa pesquisa partiu basicamente das histórias e causos recolhidos por Câmara Cascudo. O texto, dentro desta proposta explora o lúdico.

Na tarde da estréia, 05/02 com um público que lotou as escadarias da Oficina Otelo o silêncio foi quebrado apenas pelos risos da platéia diante de cenas deliciosas de muito humor e ironia, mas que voltava a imperar em cenas de rara beleza poética como o canto da sereia, momento singular do espetáculo. O espetáculo é todo composto de cenas maravilhosas, de falas marcantes, de gestos preciosos, e de um cenário pertinente à proposta teatro de rua.
Um excelente espetáculo que recomendo na certeza de que desfrutaram de momentos de magia, beleza, reflexão.
A todos, meus parabéns.

sábado, 12 de fevereiro de 2011

Fração de segundos



Ainda ontem pensei sobre o fato e o que poderia ter dito no momento, no momento a gente nunca diz, tudo é sempre depois. Na hora, o que me veio foi tirar a faca da mão dele e limpá-la. Porque tudo foi também rápido, o cão ao lado o chapéu caído, o amigo morto. E não havia mesmo outra coisa a ser feita. A não ser poupá-lo, pelo menos, por enquanto do que viria pela frente, indubitavelmente. Passei-lhe as mãos sobre sua cabeça numa tentativa de afago, mais precisamente em sua testa, um passar de dedos, um deslizar, como quem quer aliviar a dor. Ele maquinalmente olhou-me e numa fração de segundos enxerguei o menino alegre de outrora. Sua voz num sussurro, um quase choro balbuciou:
— Adormecer, quem me dera adormecer. Ficar quieto num canto, e lentamente apagar-me do mundo dos pensamentos. Vendo-o assim perdido. Uma dor inimaginável percorreu todo meu ser. Doía de um jeito diferente das outras dores. Uma agulhada fininha seguida de um calor pelo corpo todo, um não querer fazer nada. Não me mover. Ficar ao seu lado com as mãos sobre sua testa vendo o corpo estendido no chão, o sangue se espalhando, o cheiro impregnando todo o ambiente. E, mesmo perplexa diante de tal fato, apenas não julgá-lo.


quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Ruminar ideias, uma catarse literária.

 Acordava antes de todos. Descia as escadas pé ante pé o mínimo barulho seria fatal. Sabia que iriam reclamar implicar mesmo com sua mania de sair cedinho. O que fazer? Esse era seu método de trabalho. Caminhar pelas ruelas tranqüilas, encher-se da paisagem, do silêncio, observar o início de mais um dia, das poucas pessoas que cruzavam seu caminho, dos gatos tombando latas de lixo, do cheiro do pão, e muito mais. Depois, muito depois, com a caneta e o papel em branco, às vezes, sentado defronte ao teclado: - ruminar ideias, elaborar frases, jogar com as palavras, escolher uma a uma como se escolhesse feijão. Escrever suas impressões, seu sentir, seu espanto perante um mundo em eterno movimento. Assim era seu ofício. Ofício de escritor.Às tardes eram, então, dedicadas à leitura, à pesquisa, sabedor que era de que não há somente inspiração, mas como costumava dizer: — eclosão, de que nada se cria sem técnica e disciplina, sem trabalho e persuasão. Como era lindo esse ritual, quase religioso. Uma verdadeira devoção. Dia após dia lá estava ele, um sujeito comum igual a tantos outros, e não um sonhador como muitos pensavam, um lunático. Apenas um homem que via na arte da escrita o verdadeiro sentido das coisas e dizia: — uma só vida, para mim, não basta eu preciso inventar, criar histórias. E nesse ato criativo sonhar, rir, chorar com os personagens, com toda trama em que me deleito. E, que meu leitor possa também se deleitar.  Uma catarse literária em que ambos vislumbrem a própria vida.