DÍGRAFO
Rubem
Alves
Uma das minhas alegrias são
as cartas que recebo das crianças. Escrevem-me a propósito de meus livros
infantis. Alegro-me sabendo que esses livros, além de dar prazer fazem as
crianças pensar. As crianças me entendem. Meu filósofo mais querido, Nietzsche,
escrevia para adultos eruditos, e eles não o entendiam. Desanimado com a
estupidez dos adultos, ele escreveu: "Gosto de me assentar aqui, onde as
crianças brincam ao lado da parede em ruínas, entre espinhos e papoulas
vermelhas. Para as crianças, sou ainda um sábio; e também para os espinhos e as
papoulas vermelhas". Os adultos não o entendiam porque ele escrevia como
criança. Pois eu recebi carta de um menininho. Não vou revelar o nome dele para
não comprometê-lo perante a professora. Li a cartinha dele tantas vezes que já
a sei de cor. Transcrevo: "Prezado Rubem (...). Li o seu livro 'O Patinho
que Não Aprendeu a Voar'. Eu gostei, porque aprendi que liberdade é fazer o que
se quer muito mesmo. Escreva para min. E eu tenho uma professora demais. Com todos
os livros que a gente lê, ela manda fazer ditados, encontrar palavras com
dígrafo, encontro consonantal e encontro vocálico".
Minha alegria inicial foi
interrompida por um estremecimento de horror: eu não sei o que é dígrafo! Meu
Deus! Ele, um menininho de 9 anos, já sabe. E eu não. O dígrafo tem de ser
coisa muito importante, essencial, para ter sido incluído no currículo de um
menininho de 9 anos. Com certeza, é preciso Conhecê-lo para ser iniciado nos
prazeres da leitura, a única coisa que importa.E eu não sabia disso. Não sei o
que é dígrafo. Duvido da minha competência literária. E certo que Guimarães
Rosa, Adélia Prado e Manoel de Barros, ao escrever, tinham de ter sempre
presente na consciência a importância dos dígrafos. E o pior: recusei-me a saber
o que é dígrafo quando uma professora tentou salvar-me da minha ignorância. Meu pensamento é poético.
Recusa-se a nadar em linha reta. Dança, deleita-se em analogias. Apareceu-me
logo uma analogia de natureza sexual, provocada, provocada por Roland Barthes,
que liga a escritura ao erotismo: o texto como objeto de prazer, cujo manual de
delícias, seu "Kama Sutra", há de ser aprendido. O par de amantes
está abraçado, corpos e almas incendiados pelo desejo. A mão do amante desliza
vagarosamente pela pele lisa da amada. Mas ele, professor de anatomia, em
virtude dos seus saberes científicos e dos seus hábitos, em vez de ir recitando
docemente textos do 'Cântico dos Cânticos' ou poemas eróticos de Drumond, não
pode resistir à compulsão de enunciar os nomes científicos dos músculos do
corpo da amada. Assim termina uma noite que poderia ter sido uma noite de amor.
A ciência triunfa - e ele não errou nem um nome -, mas o amor fracassa. Pois é
isso que acontece naquela aula em que as crianças aprendem não os prazeres do
texto, mas os nomes anatômicos de sua gramática. Há uma razão para isso: o
prazer da leitura de um texto não pode ser avaliado. É coisa subjetiva. Não é
científico. Mas dígrafos, en-contros consonantais e vocálicos, sim. A
professora, coitada, não é culpada. Ela sabe que sua função é cumprir ordens
que vem de cima, dos especialistas. Há um programa a seguir. Ela obedece. Já
nem se atreve a pensar.
Wittgenstein diz que o
sentido de uma palavra é o uso que dela se faz. Quais os usos possíveis da
palavra "dígrafo"? Não serve para erotizar o texto. Não torna o texto
mais saboroso nem aumenta a gula literária do aluno. O texto não fica mais claro
quando seus dígrafos são grifados. Tentei imaginar uma conversa inteligente em
que a palavra "dígrafo" entrasse. Não consegui formular uma única
frase humana. Quando eu estudei, acho que
o termo "dígrafos' ainda não havia sido inventado por algum gramático. Mas
os infinitamente variados nomes da análise sintática já existiam. A
inventividade dos gramáticos não tem fim! Estudei muito a analise sintática.
Sofri tanto que, naquele tempo, escrevi num relatório para o colégio em que
estudei, o Andrews, no Rio, que eu queria ser engenheiro; eu era bom em
matemática, mas não gostava das coisas da língua. A análise sintática me
ensinou a ter raiva da literatura. Só muito mais tarde, depois de esquecer tudo
o que aprendera na análise sintática, aprendi as delícias da língua. Aí, parei
de falar os nomes anatômicos dos músculos da amada. Lia e me entregava ao puro
gozo de ler. Acho que as escolas terão realizado sua missão se forem capazes de
desenvolver nos alunos o prazer da leitura. Ele é o pressuposto de tudo mais.
Quem ama ler tem nas mãos as chaves do mundo. Mas o que vejo acontecendo é o
contrário. São raríssimos os casos de amor à leitura desenvolvido nas aulas de
estudo formal da língua.
Paul Goodman, controvertido
pensador norte-americano, diz: "Nunca soube de nenhum método para ensinar
literatura que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto
pela literatura tem dependido de milagres aleatórios, que estão ficando cada
vez menos freqüentes.Vendem-se, nas livrarias, livros com resumos das obras literárias
que caem nos vestibulares. Quem aprende resumos de obras para passar no
vestibular aprende mais que isso: aprende a odiar a literatura. Esta, como o
corpo da pessoa amada, não é objeto de conhecimentos científicos; é objeto de
prazer.Sonho com o dia em que as crianças que lêem meus livrinhos não terão de
grifar dígrafos e em que o conhecimento das obras literárias não será objeto de
exames vestibulares: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.
Rubem
Alves- educador,escritor, psicanalista,é professor emérito da Universidade
Estadual de Campinas