sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Medo da eternidade


                                                                 

Clarice Lispector

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.Quando eu era pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o   mesmo   dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.Afinal, minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida  inteira. - Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.- Não acaba nunca, e pronto. Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para  fazê-la durar mais. Eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara me dar conta.Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.- E agora que é que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.-Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. 

A menos que você perca, eu já perdi vários.Perder a eternidade? Nunca.O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamos-nos para a escola.- Acabou-se o docinho. E agora?- Agora mastigue para sempre.Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.- Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingido espanto e tristeza. -Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!- Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

LISPERTOR, Clarice. Medo da eternidade, In: A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 446-8.