quarta-feira, 29 de novembro de 2017

sexta-feira, 1 de julho de 2016

da série: Tenho um amigo que disse que eu...




Não deveria fazer essa cara de “poxa vida” sempre que estou triste. Tentei explicar que ele estava totalmente equivocado. Eu não estava triste não. É que jamais passa pela minha cabeça fazer caras e bocas. E, se ele estava me vendo assim era fruto da sua própria imaginação ou então ele mesmo é quem faz uso desses artifícios para chamar a atenção. Não tive nem tempo de completar a frase. Quando dei por mim ele tinha desaparecido. Vai ver ficou bravo. E o que eu posso fazer se é a mais pura verdade. Meu olhar e o formato da minha boca passam mesmo essa impressão, o da tristeza. Um quê de melancolia.

 Já outro amigo riu muito ao saber dessa história e me aconselhou a usar lápis para contornar os olhos e um bom batom vermelho. Esse recurso, disse-me, daria um brilho todo especial ao meu rosto. E eu lá quero ter um brilho que não seja o meu mesmo. Não que eu não use maquiagem. Uso, claro, sou vaidosa sim. Mas com a intenção de brilhar? Por favor. Essas coisas são de dentro mesmo, falamos em uníssono eu e outro amigo que adentrava todo feliz na conversa. E foi logo completando: minha cara, esse teu ar de melancolia é você por inteiro, como o meu é esse ar de bonachão. O que seria de nós se não fosse essa singularidade? É verdade mesmo, respondi. E numa fração de segundos revi rostos de pessoas que mal conheço e constatei o quanto nos enganamos ao julgar um olhar, um sorriso, um rosto mais tenso, uma ruga, um andar, um falar. 

 Já outro amigo, amigo de cabeceira, mas nem por isso distante, com seus belos textos e um bigode ímpar me ensina que é impossível mesmo nossas expressões faciais, corporais, atestarem todo o sentir. Que não nos apercebemos nem da tristeza nem da alegria que vai dentro de cada um. Porque tudo é muito dentro. No recôndito do ser. E mesmo as palavras ditas chegam-nos de tal maneira que somos sempre remetidos a nós mesmos e a nossa visão de mundo. Na hora me deu um vazio e até fiz uma cara de “poxa vida”, mas seus ensinamentos, frase a frase, página a página falaram mais alto. Nada há a fazer. É da vida, é do homem. E nisso reside toda a beleza.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

O tempo foi passando...


Conta-se que certa vez, duas crianças brincavam de quase tudo: de super herói, policia e ladrão, de serem adultos. Tudo aquilo em um cenário improvisado no quintal daquela casa amarela. Pegavam as roupas de seus pais, acessórios e tudo mais que se viam pela frente. O tempo foi passando, as crianças foram se cansando das brincadeiras e pegaram no sono. Os anos se passaram as duas crianças cresceram e se deram conta de que perderam aquela inocência de criança. Foi então que eles decidiram que tinham que mudar aquilo. Saíram para brincar novamente. Ergueram um lençol bem alto no varal, convidaram os amigos e prepararam tudo para uma grande festa. Estava tudo tão colorido cheio de vida, eis que surge de trás daquele lençol dois adultos vestidos como crianças. Pulando, fazendo traquinagens.  Eles estavam brincando novamente, mais dessa vez não era de super herói, policia e ladrão e muito menos de ser adultos e sim brincando de ser criança.


Rafael Milbio - participante da Oficina "Literatura e Palco" na escola: Teatro-Escola Mario Pérsico.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Eterno Retorno

Quero, antes de tudo, o espaço externo. Produto das minhas idas e vindas, do meu muito caminhar, das minhas fugidias paragens junto ao bosque, entre campânulas, avencas, samambaias, onde meu corpo deitado mistura-se a relva úmida e, por uns instantes, tudo é pleno. Dos meus finais de tarde em meio ao movimento caótico do trânsito e do frenesi que isso provoca; da rapidez com que os dias terminam e a pendência dos compromissos são arrastados noite adentro.  Infinito renovar-se. Eterno retorno.


Da emoção dos encontros e dos desencontros; do não e do sim dito à queima roupa. Do olhar malicioso, do corpo tocado nas tardes de puro ócio e do riso maroto dessa ousadia. Um viver e deixar-se viver, e tantos outros pequenos detalhes do dia a dia, sabedora que é preciso coragem para viver como se quer. 

sábado, 2 de novembro de 2013

da série: Tenho um amigo que disse que eu...

 
Não deveria fazer essa cara de “poxa vida” sempre que estou triste. Tentei explicar que ele estava totalmente equivocado. Eu não estava triste não. É que jamais passa pela minha cabeça fazer caras e bocas. E, se ele estava me vendo assim era fruto da sua própria imaginação ou então ele mesmo é quem faz uso desses artifícios para chamar a atenção. Não tive nem tempo de completar a frase. Quando dei por mim ele tinha desaparecido. Vai ver ficou bravo. E o que eu posso fazer se é a mais pura verdade. Meu olhar e o formato da minha boca passam mesmo essa impressão, o da tristeza. Um quê de melancolia.

Já outro amigo riu muito ao saber dessa história e me aconselhou a usar lápis para contornar os olhos e um bom batom vermelho. Esse recurso, disse-me, daria um brilho todo especial ao meu rosto. E eu lá quero ter um brilho que não seja o meu mesmo. Não que eu não use maquiagem. Uso, claro, sou vaidosa sim. Mas com a intenção de brilhar? Por favor.

Essas coisas vêm de dentro mesmo, falamos em uníssono eu e outro amigo que adentrava todo feliz na conversa. E foi logo completando: minha cara, esse teu ar de melancolia é você por inteiro, como o meu é esse ar de bonachão. O que seria de nós se não fosse essa singularidade? É verdade mesmo, respondi.  E numa fração de segundos revi rostos de pessoas que mal conheço e constatei o quanto nos enganamos ao julgar um olhar, um sorriso, um rosto mais tenso, uma ruga, um andar, um falar.

Já outro amigo, amigo de cabeceira, mas nem por isso distante, com seus belos textos e um bigode ímpar me ensina que é impossível mesmo nossas expressões faciais, corporais, atestarem todo o sentir. Que não nos apercebemos nem da tristeza nem da alegria que vai dentro de cada um. Porque tudo é muito dentro. No recôndito do ser. E mesmo as palavras ditas chegam-nos de tal maneira que somos sempre remetidos a nós mesmos e a nossa visão de mundo. Na hora me deu um vazio e até fiz uma cara de “poxa vida”, mas seus ensinamentos, frase a frase, página a página falaram mais alto. Nada há a fazer. É da vida, é do homem. E nisso reside toda a beleza.
 

sábado, 5 de outubro de 2013

Coração acelerado aperto o passo.


À medida que eu caminhava o silêncio era cortado apenas pelo farfalhar dos meus passos sobre folhas secas caídas ao chão. Fração de segundos, e lá estava eu praticamente sozinho naquele imenso parque abandonado. Coração acelerado aperto o passo. O suor já começou a escorrer. Um tremor percorre todo meu corpo já molhado. Olho o relógio quase meia noite. E me pergunto: — por que sempre acabo cedendo aos caprichos de Helena e vou ficando, ficando...À bem da verdade gosto de escutá-la. Há algo em sua voz e no jeito entusiasmado de contar coisas das mais corriqueiras do cotidiano. Uma voz doce, suave, que adentra aos meus ouvidos e me leva para longe.E ainda que sua casa seja distante da minha, um lugar retirado da cidade com poucas moradias, iluminação fraca, construções abandonadas, terrenos vazios, sempre encontro algum morador vindo do trabalho. Esse fato me apazigua. Porque medo é medo. E não há ser vivente, nesse mundo, que não se aperreie como diz o caboclo.Só que nessa noite, e não creio que seja pelo avanço da hora, não havia um ser vivente caminhando. Exceto eu. Se é que posso dizer que caminhava, pois era quase um arrasto tamanho o medo que me invadia. 

Nessas horas, penso que há de se ter firmeza e perceber que o medo provoca um jogo de nervos. E que às vezes exageramos, com nossos pensamentos, à sensação do perigo.Na realidade são quase medos, quase anseios, quase destemperos, quase pesadelos, fruto de um mundo violento em que vivemos e que nos incita a pensar no pior. Mas sobretudo porque temos medo da morte. A morte do nosso corpo e fim da nossa identidade singular.O medo que tudo abarca que nos paralisa. Mas o fato é que eu não podia e nem queria caminhar trêmulo, respiração ofegante, feito um menino diante de um monstro imaginário.E ainda restava muito chão pela frente, mas para meu alívio a imagem de Helena se formou em minha frente. Linda como a lua. Seus olhos negros profundos olhavam-me longamente. Seu sorriso escancarado, seu corpo perfeito. Tive a sensação que se esticasse o braço poderia tocá-la.

De repente sua imagem sumiu da mesma forma inesperada como apareceu, e novamente o medo me dominou. Uma coruja ou um pássaro, não sei, piou. Mau agouro diriam os místicos. Apertei ainda mais meu passo bambeante e avistei quase lá no final do parque um vulto.A princípio, como era de se esperar senti um calafrio. Numa mistura de medo e autodefesa cheguei a pensar que o sujeito, o vulto, sentia o mesmo, já que, a rua estava deserta e só nos dois nos encontrávamos ali.Mas à medida que ele se aproximava esse pensamento se dissipou, pois apesar de caminhar com passos firmes possuía uma leveza digna de bailarinos. Foi quando percebi o corpo perfeito. Era Helena. Sorri e fui ao seu encontro. Ela também veio calmamente em minha direção, e já próxima a mim sussurrou: —Com medo meu querido?A pergunta me deixou atônito, não pela pergunta em si, pois tanto Helena quanto eu tínhamos a convicção de ser o medo algo inerente ao ser humano. Sem saber o que responder, dado o inusitado da situação, enfiei a mão no bolso do paletó peguei o lenço e enxuguei o rosto lentamente me escondendo dos olhos de Helena. Quando levantei a cabeça ela não estava mais ali. Acordei dias depois no hospital com Helena ao meu lado. E ainda hoje me pergunto: — meu medo criou toda essa situação? Que outra explicação haveria para me convencer já que não sou um místico e nem um menino com seus monstros. 

domingo, 12 de maio de 2013

da série: Tenho um amigo que disse que eu:





Deveria pensar mais a respeito do assunto já que eu também sou mãe. E que é no parque de diversões que podemos saber quem realmente tem esse dom. O dom de ser mãe. Na hora não quis contrariá-lo, ele estava tão empolgado em sua fala que deixei passar. Não deveria. Acabou indo embora todo sorridente. Com aquele sorriso fruto de quem pensa que sabe e não sabe. Não que eu saiba tudo,ao contrário, mas, pelo menos não fico rindo à toa.

Já outro amigo falou que não é nada disso. E que para nos conhecermos ou conhecermos o outro é preciso silêncio e observação. Coisas impossíveis nos parques de hoje com esses brinquedos velozes e barulhentos. Concordei, em parte, mesmo porque, acho tão pouco só silêncio e observação em se tratando de nos conhecermos. Imagine, então, conhecer o outro.

É preciso mais, muito, muito mais disse outro amigo. E nesse momento fechei meus olhos. Voltei à minha infância ao lado de minha mãe no parque de diversão. Senti o perfume que exalava de seus belos cabelos negros e a força do olhar que sempre teve sobre mim. Naquela época era sim possível saber quem e como eram as mães só pelo jeito como brincavam no silêncio reinante da balança, com seus movimentos de ir e vir, da barca puxada por cordas, do chapéu mexicano com suas voltas vertiginosas. Algumas empurram os filhos como que se através da balança eles realmente pudessem ir embora pra sempre ou a barca afundasse imaginariamente num mar de águas profundas.

Eu felizmente sorria ao ver a alegria de minha mãe correndo comigo para aproveitarmos todos os brinquedos. Mesmo sem saber o que era dom, aquela mulher vivia sua maternidade com todas as forças, talvez porque vivesse todas as outras coisas da vida com a mesma intensidade. Não era só a minha mãe no parque. Ali estava uma pessoa inteira. Uma mulher com vida própria, sabedora de seus desejos mais simples, consciente de que na vida é preciso escolher.

Já outro amigo, amigo de cabeceira, conhecedor dos mistérios que nos envolve, diz:─  “Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes”. 

Mãe, pai, filho, avô, tio... O que importa? Só precisamos mesmo, como canta o poeta, sermos inteiros.


sábado, 11 de maio de 2013

"O ato de parir"



O ato de parir me fez mãe. Entre erros e acertos; mamadeiras e papinhas, segui confiante. E com uma única certeza: a de que ser mãe era não me afastar, em demasia, de mim. Entre amigos, bares, palco, prosa, poesia, trabalhos, eu, com uma energia vinda de não sei onde. Dos deuses, da palavra, da poesia? Provavelmente. Ajudava meus filhos em suas tarefas escolares, contava-lhes estórias, declamava poesias, improvisava cenas teatrais, só para ver o brilho de seus olhos e um sorriso se abrindo lentamente, e, em muitos fins de tarde, também brincávamos de roda, esconde-esconde e tantas outras brincadeiras deliciosas daquela época.  Muito passou. Muito se passou. Novos amigos, novos amores. Segui. E, em todos os momentos, a preciosa presença deles: meus filhos. Mas, em momento algum dei exclusividade. Assim, maturaram. E hoje estão aí: criativos, críticos, decididos, alegres, escolhendo seus caminhos entre erros e acertos. Numa constante troca comigo. E eu só posso, neste dia das mães, como em todos os outros dias, agradecer-lhes por serem quem são e como são. 

                                              

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Meu pai sabia. Nietzsche e... também




Meu pai dizia: “mentira tem perna curta”. Eu, então, com meus oitos anos, na época, arregalava meus olhos negros, brilhantes e o ouvia em silêncio.   E, claro, obedecia-o à risca. Em partes por medo de ficar manquitola, pois via beleza em minhas pernas longas. E, em muito, porque eu admirava o velho com sua larga sabedoria. Depois, veio a adolescência com sua fase de complexos. As pernas deixaram de ser bela e o corpo era problema. Além da negação de alguns ensinamentos familiares. Tudo tão natural e importante de vivenciar nessa fase da vida. Demorou um tempo. Tempo de sofrimento, mas passou. 

O que me lembro com grande alegria é de que se, por um lado, escolhi outros valores para minha vida, por outro, muitos dos valores, os quais ele me ensinou perduram até hoje. É o caso em relação à mentira; que ele completava dizendo: “não se deve fazer uso dela, não.” Nem das chamadas brancas, que além de não existirem, são puro preconceito. Onde já se viu mentira ter cor? E com sua voz rouca, serena, olhava fundo nos meus olhos e me questionava — porque não preta, azul, verde, amarela. Tem que ser branca? Essa coisa sempre o intrigou. Meu pai era um homem de uma curiosidade visceral. De um gosto pela justiça e liberdade sem fim. Cresci assim ao seu lado e quando parti em busca do meu caminho, novamente a questão da mentira estava presente.

Minha geração, nem todos, lutou pela verdade e fomos confundidos como jovens rebeldes, loucos, hippies, irreverentes. Sofremos na própria carne o preconceito e os equívocos de uma sociedade conservadora.  Minha ojeriza pela mentira vem daí. Uma questão política. Consciência de que a mentira, como outras afecções, constitui nosso ser. Mas que, geração após geração, busca extirpá-la. Ensinam seus filhos a lutar pelo aprimoramento. Senão, ainda estaríamos na caverna, da qual nos fala Platão.  Ou ainda, como nos ensina Nietzsche: “Em Crepúsculo dos Ídolos” — dentro da narrativa “História de um erro” — “O mundo verdadeiro uma fábula”. E, Santo Agostinho, na abertura de seu “De Mendacio ou Contra mendacium”; e Kant, Arendt... E tantos outros...
E meu saudoso pai, que entre cores e questionamentos, ensinou-me como é bom ser verdadeiro.


quinta-feira, 21 de março de 2013

O que existe, os poetas fundam -Hölderlim



A poesia está nas ruas, assim como nas coisas. A poesia está em gestos involuntários. Entre frases obscuras. Na parede das cozinhas. Nos anéis da seiva, no tenteio dos filhotes, nas asas que latejam. Nos resíduos dos amantes, misturados com estrelas. A poesia está nos restos dos dias. Nos silêncios. Pouco percebida, a poesia verte sua secreta alquimia: transfigurar os sinais de menos, as marcas da miséria, o rumor do que poderia ter sido. Resgatar a dança de esperanças perdidas, o frescor das bocas, as mãos em luta amante com a matéria do mundo. Água vital das origens e das utopias, e sede infinita, a poesia está em tudo. No entanto, em paradoxo: a poesia é raríssima. Dificílima. Poucas, raras vezes a poesia emerge da natureza das palavras e transforma-se em poemas. Poucas, raras vezes os verbos e os nomes se fazem a carne absoluta da poesia, som e sentido em unidade mágica que recria o real, inventando-o. Milhares e milhares de versos, para algumas palavras de poesia. Muitas toneladas de matéria-prima-para alguns gramas de poema (Maiakovski).

Necessidade vital: por que tão escassa?

Por um lado, o mistério da emergência do poema, seu nascimento não redutível à consciência lógica nem à intencionalidade do sujeito que poeta.Por outro lado, há poucos instantes possíveis para o florescimento da poesia na história cotidiana.É preciso conviver com os poemas. Andar com eles. Sonhar com seus signos. Ler, reler, não sei quantas vezes. Renascer com suas palavras vivas. Expor-se à sua permanente revolução da linguagem. Deixar-se seduzir por seus cantos.

HÖLDERLIN-  foi ignorado por  Goethe e exaltado por Nietzsche. Segundo Heidegger, foi um "poeta da poesia", pois acreditava que "o que permanece, fundam-no os poetas".



quinta-feira, 14 de março de 2013

da série: Tenho um amigo que disse que eu:



Ando nas ruas como se estivesse no ar, pisando nas nuvens. Não é aquele meu amigo que já comentei, aqui, várias vezes não. Ainda que ele também tenha falado algo semelhante, mas de lá pra cá mudei muito. Aliás, a gente muda com o tempo, ou melhor, a cada momento, a todo instante. Digo no voo do instante. Não que isso seja problema, creio eu. E também nada a ver com ser volúvel, inconstante, não ter opinião formada e por aí. E tenho um amigo, ou melhor, nunca nos conhecemos pessoalmente, mas eu o admiro tanto que, ouso chamá-lo de amigo, nas minhas noites de insônia são suas músicas que me tocam profundamente: — “eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre todas as coisas.”

Já outro amigo disse que não é nada disso — é que minha maneira de andar está envolta em um grande mistério e que isso fica impregnado no caminho por ando passo. Nossa que susto. Nunca pensei que o simples ato de andar pudesse provocar tanto. Mas provoca. E a bem da verdade, seja lá o que isso quer dizer, não concordo com esse amigo não, pois todos estamos envoltos em um grande mistério. Não só eu. 

É que cada pessoa tem seu jeito singular de caminhar. Uns mais rápidos apressados com seus infindáveis compromissos e envolvidos com o intenso movimento da cidade; outros com seu caminhar lento, compassado, feito eu, absortos com a paisagem com a beleza do movimento ou matutando algum pensamento, relembrando momentos.  E não é que nesse exato momento chegou meu velho e bom amigo que, todo prosa, foi logo dizendo: — caminho e caminhante o que importa mesmo e enxergar além do que se vê. Eu ri aquele meu rizinho que começa no cantinho... Você,caro leitor, por certo sabe. Esse mesmo.


segunda-feira, 11 de março de 2013

Convite


Grupo Trança de Teatro
Texto Sueli Aduan
Direção Rosana Kali






quinta-feira, 7 de março de 2013

Fêmea humana, uma linguagem



Ninguém nasce mulher: torna-se.
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da sociedade que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino.Somente a mediação de outrem pode construir um indivíduo como um outro.
Simone de Beauvoir


Opressão do gênero, Opressão de Classe
Apesar das conquistas alcançadas, há muito a ser feito.
Sueli Aduan

A linguagem, como sabemos, tem papel fundamental na constituição das coisas. E quando o assunto é “sexual”, então, há diferenças marcantes na construção de como as coisas são escritas, ditas. “Cria-se assim, por conta dessa mesma linguagem: “um tipo de mulher” e, muito provavelmente, “um tipo de homem”, e como consequência, o preconceito”.

A partir daí, a defesa de papéis e de como devem viver homens e mulheres é uma questão também de poder. Para a mulher, ainda que muito tenha se conquistado, cria-se o lugar privado (lar/segurança/família); e para o homem, com sua total independência, a rua, a liberdade, o público.

O que traz uma situação de mando, domínio, autonomia para ele; e total dependência, submissão para ela. Criam-se dicotomias: a mulher ideal (centrada na vida do marido, da casa, dos filhos) e todas as outras (libertinas devassas).  Esse equívoco na defesa dos papéis seja pela sociedade como um todo ou por pequenas minorias, produz o macho com a prerrogativa do intelecto e a fêmea fechada em si, no próprio corpo que a define como mulher.


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

PROJETO ESPECIAL: “QUARUP PARA MANTOVANI”

Carlos Roberto Mantovani
O Quarup é um ritual. Ritual de homenagem aos mortos ilustres celebrado pelos povos indígenas da região do Xingu . Este projeto especial é um tributo a  Carlos Roberto Mantovani, artista multifacetado e personalidade cultural de Sorocaba. As atividades propostas irão revelar preciosidades de sua obra composta de incontáveis conexões artísticas que em *linguagem distintas trarão reverberações de sua arte à nova geração de artistas, criadores e interpretes.


WORKSHOP DE LITERATURA- 
Coordenação: Sueli Aduan
18 / 4 a 2 / 5 - quintas- feiras - 18h50 às 21h50
Publico alvo: interessados em literatura 
                                      Inscrições: 25 / 2 a 17 / 4  -
                                              Seleção: primeiros inscritos-
                                              20 vagas

SARAU:
ATO POÉTICO "O DRAGÃO QUE ME QUEIMA É O MESMO QUE ME SAVA"
9 / 5 - quinta-feira - 19h
Indicação livre
60 vagas

Partindo da leitura de poemas presentes nos livros "Escritos Ordinários" e Redundância" de Carlos Roberto Mantovani, o workshop propõe exercícios de escrita e interpretação, difundindo assim a poesia integrante da obra multifacetada de Mantovani, destacando a importância artística deste poeta  de Sorocaba. Além de despertar para as infinitas possibilidades do fazer literário, a atividade terá como resultado final a ralização de um Ato Poético.Sueli Aduan

Sueli Aduan: graduada pela Faculdade de Filosofia Ciência e Letras de Sorocaba, Professora: SENAC-SOROCABA: Metodologia do Trbalho Científico; Escrita e Redação. Palestras SESC - SOROCABA: "A poesia na Contemporaneidade" e "A didática na criação do conto". Conto:"No voo do instante" contemplado pelo PROAC - 2012- dentro do Projeto 'Redemoinho das Artes"



sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

da série: Fração de segundos


Quando o médico disse o resultado ela respirou fundo e esboçou um discreto sorriso. Sentiu-se entre aliviada e surprêsa. Alívio em saber que por um tempo imprevísivel estaria saudável,  viva, parte de um mundo que nem ela nem ninguém controla. Pronta novamente para entregar-se aos seus afazeres cotidianos, seus projetos, experiências, sonhos. A surprêsa  se deu por, mais uma vez, perceber a fragilidade humana frente as pequenas e grandes situações de instabilidade que todos vivemos. Numa fração de segundos,  tudo  se altera. O que era deixa de ser. Num mundo feito de alternâncias, diferenças e conflitos não poderia mesmo ser de outra forma. E a beleza reside justamente no movimento e  no repouso; na alegria e na tristeza; no trabalho e no descanso; e em tudo que pulsa.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

da série: Tenho um amigo que disse que eu:



 Mudo feito sertanejo em épocas de seca. A princípio, pensei que ele se referia à cor dos meus cabelos, já que faz tempo não mudo de cidade, de casa. E até perguntei: —  Você gostou da cor atual? Ele arregalou os olhos e sorrindo disse: — Não é nada disso, me refiro ao seu modo de pensar, da sua visão de mundo. Eu dei aquele sorrisinho que você, leitor, já conhece e não mudou nadica de nada. Começa no cantinho esquerdo da boca e mal parece um riso, é mais um mexer de lábios mesmo. Sorriso perceptível para poucos, raros eu diria. Gente que gosta de matutar, observar, silenciar.

Já um outro amigo diz que não se trata de nada disso não, e que a vida da pessoa é assim mesmo.Uns permanecem sempre os mesmos. E não querem mudanças, a não ser àquelas pequeninas. Coisas do viver diário.  Crescem na mesma cidade, mantém os mesmos amigos da infância e até acrescentam alguns outros. Mas estão sempre nos mesmos lugares. E para esses a vida é assim mesmo, apenas um suceder de dias.  Já outros traçam outras experiências, são inquietos por natureza, ávidos por viver intensamente, e nos dão a impressão de que cada dia é um novo dia na vida deles.

Já um outro amigo, amigo maior, desses que sempre tem algo a nos dizer e sabedor que a vida é feita de prosa e poesia diz que não se trata de uma simples mudança. E sim de aprimoramento. E visão de mundo tem a ver não só com novas experiências, mas principalmente com incorporar ao nosso viver diário aquilo que lemos nos bons livros. E, com sua voz doce e rouca, leu para mim:

“uma leitura que nos põe em estado de perda, que desconforta, faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem, com a vida”.  Roland Barthes.

E completou: — aí sim, minha amiga, podemos nomear de mudança, pois se dá por inteiro. Eu sorri, mas dessa vez um sorriso escancarado.


BARTHES, Roland. O prazer do texto. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 2002.



sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

DESAPRENDENDO A LIÇÃO




DESAPRENDENDO A LIÇÃO
Affonso Romano de Sant’anna

“Há uma idade em que se ensina o que se sabe, mas em seguida vem outra idade em que se ensina o que não se sabe”. Esta frase de Roland Barthes é instigante. Desmistifica a prática usual do ensino. Por isto, ele continua seu pensamento afirmando que é preciso “desaprender”, "deixar trabalhar o imprevisível” até que surja a chamada “sapiência”, uma sensação de “nenhum poder, um pouco de saber”, mas com “o maior sabor possível”. E num seminário em Paris, praticando a errância do saber, propôs aos alunos que o encontro na classe não tivesse tema pré-determinado. O desejo inconsciente do saber é que deveria aflorar o tema. Ali os alunos deveriam não apenas desejar saber, mas saber desejar.

Desejar o saber é uma primeira etapa, mas saber desejar é refinada atitude. Entre um e outro vai a distância do canibal ao gourmet.Como derivação das colocações de Barthes se poderia dizer: o professor pensa ensinar o que sabe, o que recolheu dos livros e da vida. Mas o aluno aprende do professor não necessariamente o que o outro quer ensinar, mas aquilo que quer aprender. Assim o aluno pode aprender o avesso ou o diferente do que o professor ensinou. Ou aquilo que o mestre nem sabe que ensinou, mas o aluno reteve. O professor, por isto, ensina também o que não quer, algo de que não se dá conta e passa silenciosamente pelos gestos e paredes da sala. É, aliás, a mesma história que se dá com o texto. O autor se propõe a dizer uma coisa, mas o leitor constrói sua leitura segundo suas carências e iluminações. Por isto se equivocou Jacques Derridá ao dizer que o texto escrito segue livre sem paternidade, enquanto o discurso oral é tutelado pelo orador. O orador também não controla seu discurso, pelo simples fato de estar presente.

A palavra ao ser pronunciada já não nos pertence. O orador é falado pelo seu discurso. Fala-se o que se pensa que se sabe, ouve-se o que se pensa que foi pronunciado. O sentido é construído a muitas vozes e ouvidos, harmonicamente. Tinha razão o polifônico Sócrates: “A verdade não está com os homens, mas entre os homens”. Repitamos a frase de Barthes: “Há uma idade em que se ensina o que se sabe, mas em seguida vem outra idade em que se ensina o que não se sabe”. E adicionemos o seguinte raciocínio: em geral pensa-se que o professor é aquele que “fala”, que preenche com seu encachoeirado discurso uma aula de 50 minutos ou um seminário de três horas. Este é um conceito de ensino como uma atividade “oracular” da parte do mestre, que se complementa numa passividade “auricular” da parte do aluno.

Contudo, assim como o espaço em branco é importante no poema, assim como a pausa organiza a música, o saber pode brotar do silêncio. O jorro contínuo de palavras pode ostentar apenas ansiedade. O conhecimento pode se instalar no entreato. O silêncio também fala. É isto que se aprende durante as ditaduras. E, por outro lado, durante as democracias se aprende que o discurso nem sempre diz. Portanto, à audácia de desaprender o aprendido soma-se a astúcia do silêncio. No princípio era o Verbo. A construção do silêncio exige muitas palavras. O escritor, por exemplo, constrói uma casa de palavras para ouvir seu silêncio interior. Comecei falando em Barthes. E aquela frase inicial dele remete não só para a questão do “saber” e do “sabor”, mas do “saber” e do “poder”. Na verdade enriquece-se o saber combatendo-se o poder que ele aparenta. E uma forma de incrementar o poder é o “perder”. Assim, o melhor professor seria aquele que não detém o poder e nem o saber, mas que está disposto a perder o poder, para fazer emergir o saber múltiplo. Nesse caso, perder é uma forma de ganhar e o saber é recomeçar.

E para terminar, nada melhor que uma frase de outro desconstrutor de verdades, que é Guimarães Rosa: “Mestre não é quem ensina, mas aquele que, de repente, aprende”.



quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Insólito viver

Performance- Movimento Butô-Poesia Hacai
Salto 2012


Dança pássar guerreiro.
Voa e sonha.
Homem livre
Dança que sua pena, pele, é poesia.
Palavra texto.
Sagrado corpo.
Nu
Linha a linha.
Registro do verso.
Marcas do tempo.
Tempo do homem.
Do corpo.
Da poesia.
Deuses
Demônios
Sons
Silêncios
Esse insólito viver.


Obs: Poesia Haicai construída sempre com tres versos ( na poesia Insólito viver -os tres primeiros) O restante dos versos escrevi para atender a performance.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Medo da eternidade


                                                                 

Clarice Lispector

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.Quando eu era pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o   mesmo   dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.Afinal, minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida  inteira. - Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.- Não acaba nunca, e pronto. Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para  fazê-la durar mais. Eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara me dar conta.Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.- E agora que é que eu faço? – Perguntei para não errar no ritual que certamente deveria haver.-Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. 

A menos que você perca, eu já perdi vários.Perder a eternidade? Nunca.O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamos-nos para a escola.- Acabou-se o docinho. E agora?- Agora mastigue para sempre.Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito.Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.- Olha só o que me aconteceu! – Disse eu em fingido espanto e tristeza. -Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!- Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

LISPERTOR, Clarice. Medo da eternidade, In: A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 446-8.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

da série: Fração de segundos


Era só uma questão, como dizem os economistas, de saber administrar. E sendo assim ela seguiu à risca, mas não se tratava das contas a pagar não. E muito menos de administrar o tempo, como dizem poeticamente  os espiritualistas: - Há um tempo para plantar e outro para colher.  Era somente uma questão de colocar em primeiro lugar seu desejo.

Desejo de viver, de dar vazão a sua sensibilidade frente a um mundo rotineiro em demasia. Por que ,então, essa indecisão se tudo conspirava? Da janela aberta, onde ele a esperava com um risinho maroto, ao vinho sobre a mesa. E foi assim, numa fração de segundos, que ela livre, feito pássaro em seu voo matinal, correu para os beijos daquele que tanto a desejava.


sábado, 27 de outubro de 2012

Quis acordá-la, mas não.


Desço a rua tranquilamente. Olho o relógio. Seis horas.  Rua deserta escuto o farfalhar de meus passos sobre o chão, cadenciado passo, dança e música misturadas ao silêncio existente. Na mente nenhum pensamento ordenado ocorre. Trajeto feito todos os dias, hábito enraizado, é só seguir em frente. Em alguns dias a atenção volta-se para o andar, em outros para a respiração, há ainda aqueles dias em que se fixa nos cheiros, nos aromas das casas, nos lixos tombados, no latido do cão e finalmente no gato fugindo sorrateiramente.

Feito a pássaro livre em seu voo matinal, ela muda rapidamente. O que determina essa atenção? Nenhuma escolha prévia. Nada. Somente o olhar e o sentir. Distância encantatória entre as coisas e o homem. Foi numa dessas manhãs, que inexplicavelmente e numa fração de segundos passei do sentir ao pensar. Um único pensamento tomou conta de todo o meu ser. Perdi a tranquilidade, o silêncio, a música, a dança, o chão. À medida que caminhava percebi que seria impossível viver sem resolver tamanho tormento. Pessoa de extremos voltei para casa. Olhei teu corpo na cama, passei-lhe suavemente as mãos pelos cabelos negros. Quis acordá-la, mas não. Para quê? Sobre o móvel deixei-lhe a chave.



sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Dígrafo




DÍGRAFO
Rubem Alves

Uma das minhas alegrias são as cartas que recebo das crianças. Escrevem-me a propósito de meus livros infantis. Alegro-me sabendo que esses livros, além de dar prazer fazem as crianças pensar. As crianças me entendem. Meu filósofo mais querido, Nietzsche, escrevia para adultos eruditos, e eles não o entendiam. Desanimado com a estupidez dos adultos, ele escreveu: "Gosto de me assentar aqui, onde as crianças brincam ao lado da parede em ruínas, entre espinhos e papoulas vermelhas. Para as crianças, sou ainda um sábio; e também para os espinhos e as papoulas vermelhas". Os adultos não o entendiam porque ele escrevia como criança. Pois eu recebi carta de um menininho. Não vou revelar o nome dele para não comprometê-lo perante a professora. Li a cartinha dele tantas vezes que já a sei de cor. Transcrevo: "Prezado Rubem (...). Li o seu livro 'O Patinho que Não Aprendeu a Voar'. Eu gostei, porque aprendi que liberdade é fazer o que se quer muito mesmo. Escreva para min. E eu tenho uma professora demais. Com todos os livros que a gente lê, ela manda fazer ditados, encontrar palavras com dígrafo, encontro consonantal e encontro vocálico".

Minha alegria inicial foi interrompida por um estremecimento de horror: eu não sei o que é dígrafo! Meu Deus! Ele, um menininho de 9 anos, já sabe. E eu não. O dígrafo tem de ser coisa muito importante, essencial, para ter sido incluído no currículo de um menininho de 9 anos. Com certeza, é preciso Conhecê-lo para ser iniciado nos prazeres da leitura, a única coisa que importa.E eu não sabia disso. Não sei o que é dígrafo. Duvido da minha competência literária. E certo que Guimarães Rosa, Adélia Prado e Manoel de Barros, ao escrever, tinham de ter sempre presente na consciência a importância dos dígrafos. E o pior: recusei-me a saber o que é dígrafo quando uma professora tentou salvar-me da minha ignorância. Meu pensamento é poético. Recusa-se a nadar em linha reta. Dança, deleita-se em analogias. Apareceu-me logo uma analogia de natureza sexual, provocada, provocada por Roland Barthes, que liga a escritura ao erotismo: o texto como objeto de prazer, cujo manual de delícias, seu "Kama Sutra", há de ser aprendido. O par de amantes está abraçado, corpos e almas incendiados pelo desejo. A mão do amante desliza vagarosamente pela pele lisa da amada. Mas ele, professor de anatomia, em virtude dos seus saberes científicos e dos seus hábitos, em vez de ir recitando docemente textos do 'Cântico dos Cânticos' ou poemas eróticos de Drumond, não pode resistir à compulsão de enunciar os nomes científicos dos músculos do corpo da amada. Assim termina uma noite que poderia ter sido uma noite de amor. A ciência triunfa - e ele não errou nem um nome -, mas o amor fracassa. Pois é isso que acontece naquela aula em que as crianças aprendem não os prazeres do texto, mas os nomes anatômicos de sua gramática. Há uma razão para isso: o prazer da leitura de um texto não pode ser avaliado. É coisa subjetiva. Não é científico. Mas dígrafos, en-contros consonantais e vocálicos, sim. A professora, coitada, não é culpada. Ela sabe que sua função é cumprir ordens que vem de cima, dos especialistas. Há um programa a seguir. Ela obedece. Já nem se atreve a pensar.

Wittgenstein diz que o sentido de uma palavra é o uso que dela se faz. Quais os usos possíveis da palavra "dígrafo"? Não serve para erotizar o texto. Não torna o texto mais saboroso nem aumenta a gula literária do aluno. O texto não fica mais claro quando seus dígrafos são grifados. Tentei imaginar uma conversa inteligente em que a palavra "dígrafo" entrasse. Não consegui formular uma única frase humana. Quando eu estudei, acho que o termo "dígrafos' ainda não havia sido inventado por algum gramático. Mas os infinitamente variados nomes da análise sintática já existiam. A inventividade dos gramáticos não tem fim! Estudei muito a analise sintática. Sofri tanto que, naquele tempo, escrevi num relatório para o colégio em que estudei, o Andrews, no Rio, que eu queria ser engenheiro; eu era bom em matemática, mas não gostava das coisas da língua. A análise sintática me ensinou a ter raiva da literatura. Só muito mais tarde, depois de esquecer tudo o que aprendera na análise sintática, aprendi as delícias da língua. Aí, parei de falar os nomes anatômicos dos músculos da amada. Lia e me entregava ao puro gozo de ler. Acho que as escolas terão realizado sua missão se forem capazes de desenvolver nos alunos o prazer da leitura. Ele é o pressuposto de tudo mais. Quem ama ler tem nas mãos as chaves do mundo. Mas o que vejo acontecendo é o contrário. São raríssimos os casos de amor à leitura desenvolvido nas aulas de estudo formal da língua.

Paul Goodman, controvertido pensador norte-americano, diz: "Nunca soube de nenhum método para ensinar literatura que não terminasse por matá-la. Parece que a sobrevivência do gosto pela literatura tem dependido de milagres aleatórios, que estão ficando cada vez menos freqüentes.Vendem-se, nas livrarias, livros com resumos das obras literárias que caem nos vestibulares. Quem aprende resumos de obras para passar no vestibular aprende mais que isso: aprende a odiar a literatura. Esta, como o corpo da pessoa amada, não é objeto de conhecimentos científicos; é objeto de prazer.Sonho com o dia em que as crianças que lêem meus livrinhos não terão de grifar dígrafos e em que o conhecimento das obras literárias não será objeto de exames vestibulares: os livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.

Rubem Alves- educador,escritor, psicanalista,é professor emérito da Universidade Estadual de Campinas

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

da série: Tenho um amigo que disse que eu:


Preciso modificar alguns hábitos ou melhor  arrancar todos eles, os quais delicadamente nomeou de síndrome “habimort”, ou seja, hábitos que matam. Foi como me explicou e, segundo ele para o meu próprio crescimento interior. Fiquei ali parada sem saber se ria ou chorava em ver o seu empenho em me convencer. Não que eu não busque mudanças. Sei que são saudáveis.  Mas as coisas não são tão simples assim. E depois todos temos hábitos. Como dizia minha sábia avó: — Tem coisa mio di bão não, bicho di custume.

Já um outro amigo diz que não tem jeito mesmo e que, quando arrancamos um hábito outro devagarzinho vai se formando,  temos que estar alertas o tempo todo. Ruminando essas ideias fico a pensar: —  pra que mudar se logo outro vai se enraizar. O jeito, então, é ficar com o velho que, pelo menos, já conheço.

Aí um outro amigo não aguentou e disse que não é nada disso, que essa coisa tão simples  chamada  de mesmice nos incomoda muito, nos deixa amargurados. E é preciso extirpá-la com um método que ele nomeou de “ou vai ou racha”. E que consiste em todo dia ter algo novo para fazer. Como, por exemplo, inventar uma receita de bolo que não precise ir ao forno ou um bordado que não use linhas ou uma visita a alguém que não se conhece ou... Arregalei uns olhos dado ao inusitado da situação que ele pediu desculpas e disse que nossa conversa era um hábito que precisava extirpar. Cada um, um — pensei.  Mas é bom amigo. Fiquei sabendo que logo vai receber alta. Ou vai ou racha maldade minha esse pensamento. Fazer o que e a força do hábito. 

Eu já estava quase desistindo de querer entender quando apareceu meu velho amigo, amigo maior, desses que ficam enraizados no nosso coração. E ele disse daquele seu jeito habitual de dizer coisas: — que quando menos se espera, quando a hora chega e o nosso coração transborda, ele sabe que  precisa de  novas aventuras, novas vivências. E o que é velho, o que fica ali nos incomodando e nos tornando amargurados vai embora como num passe de mágica. Não deu nem tempo de arregalar meus olhos. E, ele já veio logo se explicando, conhecedor de meus pequenos hábitos, mas que essa mágica é a gente mesmo quem faz. E é muito simples não precisa de método, nem nomes, nem nada. Só é preciso aprender a olhar para dentro de si. E escolher a cada dia o que se quer, como se quer, para que se quer, e  permitir-se o espanto consigo e com o outro. 


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

TÒ THAUMÁZEIN Flechas Laocoon


Se conseguires tirar os olhos dos olhos desse menino e prestares atenção à sua orelha esquerda, verás ali um pequeno aparelho de surdez. Este menino genuinamente espantado ouve sons pela primeira vez em sua vida. E tu, tu te espantas com o quê? Que espécie de som arregala os teus olhos? Os olhos de quem abrem os teus ouvidos? Que contrariedade congela o teu pescoço? Que buraco aberto interrompe os teus passos? Que touro enfurecido te faz saltar um muro? Com que tipo de toque os teus pêlos se eriçam? Que dor fecha a tua garganta? Que cena abre o teu sorriso? Que admiração te faz pensar? "Pois este estado é o mais próprio do filósofo: o admirar-se; com efeito, não há outro princípio da filosofia que não este”, diz o Sócrates platônico no Teeteto. Mas o que era o thaûma para os gregos? O que era o admirar-se, tò thaumázein?

Segundo Vernant, no mito o thâuma é o maravilhoso, o assombro, mas com a filosofia "a admiração se faz questionamento, interrogação". Será mesmo? Serão estanques admiração e interrogação? Interrogo-te assombrada, Vernant. Como pode o ser humano ser um sem interrogação? Como pode o filósofo ser um sem admiração? E que tanto de espanto ou de medo ou de susto carrega consigo o thaumázein? Admirar-se, espantar-se, surpreender-se, maravilhar-se. Étonner, do latim extonare, ser atingido por uma tempestade, ser surpreendido, perturbar, amedrontar, mas também maravilhar-se, ficar impressionado diante deste espetáculo. Amaze: surpreender fortemente, encher de admiração. Stupire: espantar, surpreender, maravilhar. Mas, então, admirar-se e espantar-se são sinônimos e thaumázein é misto de gozo e de medo? Mas quem é capaz de admiração na massiva sociedade de imagens em ação? Quem, sem imaginação, é capaz de se assombrar com uma situação? Quem tem coragem de ver tudo novo de novo e não perder a razão?

 Quem é presente o suficiente para não se esconder nas imagens do passado e se assombrar mais uma vez como pela primeira vez? Mas como posso me assombrar novamente com um terremoto ou com a fome ou com a guerra ou com uma epidemia se nem mesmo me lembro se um dia me espantei com tais situações? Além disso, se o menino da foto tirar seu aparelho de surdez, não se assombrará novamente com o silêncio, pois apesar de agora vívido, é silêncio já vivido. Então, que aparelho de surdez preciso instalar em minha alma para ouvir o som do mundo como quando nasci? Mas não existe tal aparelho, tu me afirmas, sem assombro e sem questionamento. Mas câmera fotográfica há. E como achas que se sentiu o fotógrafo que conseguiu enxergar e apreender o momento acima? Assombrar-me-ia se um dia soubesse que ele ou ela não se assombrou. Boa foto é questão de foco.

Tudo é uma questão de leitura, já disse eu nesta mesma coluna. Repito, à luz da iluminada Simone Weil: o mundo é o que lemos e lemos o que queremos. E digo agora: se está difícil ler de outro modo a realidade, sempre podes mudar algumas coisas de lugar. Não basta que mudes os móveis, muda as tuas próprias partes e com teus pedaços monta um ser atônito, como escreve o Poeta Manoel de Barros. E montando um ser atônito, montas um ser poético. Afinal, “a poesia nasce do espanto”, afirma Ferreira Gullar. Também o amor nasce do espanto. Portanto, se alguém te disser: _Não te espantes com meu amor. Não obedeça. Espanta-te com o pedaço de ti que é amado! Deixa-te espantar, inocente e interrogativamente. Espanta-te com a gratuidade! E quando vires alguém pular sete ondas no dia 1º de janeiro, espanta-te também com a sua parte de fé que se multiplica sete vezes sete, ano após ano. Por falar em fé, será que quando o Cristo afirma que o reino dos céus é das crianças, quer dizer, na verdade, que o reino dos céus é acessível àqueles que têm capacidade de thaumázein? Será que o thaumázein é arkhé, é princípio, não apenas da filosofia e da poesia, mas também da fé? Será que milagre não é senão o som velho do mundo velho a ressoar como se fosse o primeiro acorde de um mundo nascente? Milagre é conseguir ler a ordem por trás da necessidade? Então a foto acima revela um milagre?

O milagre do menino surdo que ouve pela primeira vez um som que a nossos ouvidos nada mais é que uma música antiga em um disco arranhado tocando em uma vitrola herdada dos antepassados? Um sem número de perguntas e nenhuma resposta. Somente assombros e interrogações.

dana paulinelli