Se
conseguires tirar os olhos dos olhos desse menino e prestares atenção à sua
orelha esquerda, verás ali um pequeno aparelho de surdez. Este menino
genuinamente espantado ouve sons pela primeira vez em sua vida. E tu, tu te
espantas com o quê? Que espécie de som arregala os teus olhos? Os olhos de quem
abrem os teus ouvidos? Que contrariedade congela o teu pescoço? Que buraco
aberto interrompe os teus passos? Que touro enfurecido te faz saltar um muro?
Com que tipo de toque os teus pêlos se eriçam? Que dor fecha a tua garganta?
Que cena abre o teu sorriso? Que admiração te faz pensar? "Pois este
estado é o mais próprio do filósofo: o admirar-se; com efeito, não há outro princípio
da filosofia que não este”, diz o Sócrates platônico no Teeteto. Mas o que era
o thaûma para os gregos? O que era o admirar-se, tò thaumázein?
Segundo
Vernant, no mito o thâuma é o maravilhoso, o assombro, mas com a
filosofia "a admiração se faz questionamento, interrogação". Será
mesmo? Serão estanques admiração e interrogação? Interrogo-te assombrada,
Vernant. Como pode o ser humano ser um sem interrogação? Como pode o filósofo
ser um sem admiração? E que tanto de espanto ou de medo ou de susto carrega
consigo o thaumázein? Admirar-se, espantar-se, surpreender-se,
maravilhar-se. Étonner, do latim extonare, ser atingido por uma
tempestade, ser surpreendido, perturbar, amedrontar, mas também maravilhar-se,
ficar impressionado diante deste espetáculo. Amaze: surpreender
fortemente, encher de admiração. Stupire: espantar, surpreender,
maravilhar. Mas, então, admirar-se e espantar-se são sinônimos e thaumázein
é misto de gozo e de medo? Mas quem é capaz de admiração na massiva sociedade
de imagens em ação? Quem, sem imaginação, é capaz de se assombrar com uma
situação? Quem tem coragem de ver tudo novo de novo e não perder a razão?
Quem é presente o suficiente para não se
esconder nas imagens do passado e se assombrar mais uma vez como pela primeira
vez? Mas como posso me assombrar novamente com um terremoto ou com a fome ou
com a guerra ou com uma epidemia se nem mesmo me lembro se um dia me espantei
com tais situações? Além disso, se o menino da foto tirar seu aparelho de
surdez, não se assombrará novamente com o silêncio, pois apesar de agora
vívido, é silêncio já vivido. Então, que aparelho de surdez preciso instalar em
minha alma para ouvir o som do mundo como quando nasci? Mas não existe tal
aparelho, tu me afirmas, sem assombro e sem questionamento. Mas câmera
fotográfica há. E como achas que se sentiu o fotógrafo que conseguiu enxergar e
apreender o momento acima? Assombrar-me-ia se um dia soubesse que ele ou ela
não se assombrou. Boa foto é questão de foco.
Tudo
é uma questão de leitura, já disse eu nesta mesma coluna. Repito, à luz da
iluminada Simone Weil: o mundo é o que lemos e lemos o que queremos. E digo
agora: se está difícil ler de outro modo a realidade, sempre podes mudar
algumas coisas de lugar. Não basta que mudes os móveis, muda as tuas próprias
partes e com teus pedaços monta um ser atônito, como escreve o Poeta Manoel de
Barros. E montando um ser atônito, montas um ser poético. Afinal, “a poesia
nasce do espanto”, afirma Ferreira Gullar. Também o amor nasce do espanto.
Portanto, se alguém te disser: _Não te espantes com meu amor. Não obedeça.
Espanta-te com o pedaço de ti que é amado! Deixa-te espantar, inocente e
interrogativamente. Espanta-te com a gratuidade! E quando vires alguém pular
sete ondas no dia 1º de janeiro, espanta-te também com a sua parte de fé que se
multiplica sete vezes sete, ano após ano. Por falar em fé, será que quando o
Cristo afirma que o reino dos céus é das crianças, quer dizer, na verdade, que
o reino dos céus é acessível àqueles que têm capacidade de thaumázein?
Será que o thaumázein é arkhé, é princípio, não apenas da
filosofia e da poesia, mas também da fé? Será que milagre não é senão o som
velho do mundo velho a ressoar como se fosse o primeiro acorde de um mundo
nascente? Milagre é conseguir ler a ordem por trás da necessidade? Então a foto
acima revela um milagre?
O
milagre do menino surdo que ouve pela primeira vez um som que a nossos ouvidos
nada mais é que uma música antiga em um disco arranhado tocando em uma vitrola
herdada dos antepassados? Um sem número de perguntas e nenhuma resposta.
Somente assombros e interrogações.
dana paulinelli