quinta-feira, 2 de agosto de 2012

TÒ THAUMÁZEIN Flechas Laocoon


Se conseguires tirar os olhos dos olhos desse menino e prestares atenção à sua orelha esquerda, verás ali um pequeno aparelho de surdez. Este menino genuinamente espantado ouve sons pela primeira vez em sua vida. E tu, tu te espantas com o quê? Que espécie de som arregala os teus olhos? Os olhos de quem abrem os teus ouvidos? Que contrariedade congela o teu pescoço? Que buraco aberto interrompe os teus passos? Que touro enfurecido te faz saltar um muro? Com que tipo de toque os teus pêlos se eriçam? Que dor fecha a tua garganta? Que cena abre o teu sorriso? Que admiração te faz pensar? "Pois este estado é o mais próprio do filósofo: o admirar-se; com efeito, não há outro princípio da filosofia que não este”, diz o Sócrates platônico no Teeteto. Mas o que era o thaûma para os gregos? O que era o admirar-se, tò thaumázein?

Segundo Vernant, no mito o thâuma é o maravilhoso, o assombro, mas com a filosofia "a admiração se faz questionamento, interrogação". Será mesmo? Serão estanques admiração e interrogação? Interrogo-te assombrada, Vernant. Como pode o ser humano ser um sem interrogação? Como pode o filósofo ser um sem admiração? E que tanto de espanto ou de medo ou de susto carrega consigo o thaumázein? Admirar-se, espantar-se, surpreender-se, maravilhar-se. Étonner, do latim extonare, ser atingido por uma tempestade, ser surpreendido, perturbar, amedrontar, mas também maravilhar-se, ficar impressionado diante deste espetáculo. Amaze: surpreender fortemente, encher de admiração. Stupire: espantar, surpreender, maravilhar. Mas, então, admirar-se e espantar-se são sinônimos e thaumázein é misto de gozo e de medo? Mas quem é capaz de admiração na massiva sociedade de imagens em ação? Quem, sem imaginação, é capaz de se assombrar com uma situação? Quem tem coragem de ver tudo novo de novo e não perder a razão?

 Quem é presente o suficiente para não se esconder nas imagens do passado e se assombrar mais uma vez como pela primeira vez? Mas como posso me assombrar novamente com um terremoto ou com a fome ou com a guerra ou com uma epidemia se nem mesmo me lembro se um dia me espantei com tais situações? Além disso, se o menino da foto tirar seu aparelho de surdez, não se assombrará novamente com o silêncio, pois apesar de agora vívido, é silêncio já vivido. Então, que aparelho de surdez preciso instalar em minha alma para ouvir o som do mundo como quando nasci? Mas não existe tal aparelho, tu me afirmas, sem assombro e sem questionamento. Mas câmera fotográfica há. E como achas que se sentiu o fotógrafo que conseguiu enxergar e apreender o momento acima? Assombrar-me-ia se um dia soubesse que ele ou ela não se assombrou. Boa foto é questão de foco.

Tudo é uma questão de leitura, já disse eu nesta mesma coluna. Repito, à luz da iluminada Simone Weil: o mundo é o que lemos e lemos o que queremos. E digo agora: se está difícil ler de outro modo a realidade, sempre podes mudar algumas coisas de lugar. Não basta que mudes os móveis, muda as tuas próprias partes e com teus pedaços monta um ser atônito, como escreve o Poeta Manoel de Barros. E montando um ser atônito, montas um ser poético. Afinal, “a poesia nasce do espanto”, afirma Ferreira Gullar. Também o amor nasce do espanto. Portanto, se alguém te disser: _Não te espantes com meu amor. Não obedeça. Espanta-te com o pedaço de ti que é amado! Deixa-te espantar, inocente e interrogativamente. Espanta-te com a gratuidade! E quando vires alguém pular sete ondas no dia 1º de janeiro, espanta-te também com a sua parte de fé que se multiplica sete vezes sete, ano após ano. Por falar em fé, será que quando o Cristo afirma que o reino dos céus é das crianças, quer dizer, na verdade, que o reino dos céus é acessível àqueles que têm capacidade de thaumázein? Será que o thaumázein é arkhé, é princípio, não apenas da filosofia e da poesia, mas também da fé? Será que milagre não é senão o som velho do mundo velho a ressoar como se fosse o primeiro acorde de um mundo nascente? Milagre é conseguir ler a ordem por trás da necessidade? Então a foto acima revela um milagre?

O milagre do menino surdo que ouve pela primeira vez um som que a nossos ouvidos nada mais é que uma música antiga em um disco arranhado tocando em uma vitrola herdada dos antepassados? Um sem número de perguntas e nenhuma resposta. Somente assombros e interrogações.

dana paulinelli