quinta-feira, 21 de outubro de 2010

da série: Tenho um amigo que disse que eu:


Bem, que eu deveria mesmo me conformar, aceitar e pronto. Eu, na hora, quase que concordo. Sabe aqueles momentos em que  sentimos não valer a pena travar uma discussão, que não vai acrescentar nada, pois então. Ele percebeu minha quietude e foi logo mudando a prosa. Até gostei. Amigo tem mesmo é que conhecer o momento do outro, respeitar, pisar leve, falar manso, ou calar.
Já um outro amigo desses que nunca estão em silêncio foi logo falando: é isso mesmo aceite não há coisa melhor coisa para se fazer, não. E ainda acrescentou: “o que não tem remédio, remediado está”. Eu dei aquele meu sorrisinho de lado que nem chega a ser um sorriso é um leve mover de lábios de quem não concorda com o dito. É que tenho minhas dúvidas quanto à eficácia desses e tantos outros provérbios. Ele, como o outro, também percebeu meu espanto diante da sua colocação e foi logo tratando de deixar o ambiente. Não era para tanto, amigo tem mesmo é que sentir-se à vontade, viver a alegria da companhia, e ser uma festa só.
Já um outro amigo, sabedor das coisas da boa amizade, com seu olhar doce e um sorriso iluminado calmamente disse: os tempos são outros mesmo, minha cara, e não se trata de aceitar, não. É preciso coragem pra não permitir o mau uso da palavra, e com seu jeito leve de brincar completou: há porta e portinhola; gaiola e gaiolinha todas se abrem para algum lugar, mas os espaços são outros. Vôos e caminhos. E não está certo o mesmo nomear para tantas coisas que há. Há árvores e plantas; planaltos e planícies; vales e morros; musica e letra, projetos e planos. Cada coisa é uma coisa. Fazes é muito bem em não aceitar.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Realidade Travestida


Naquela tarde Eleonora fechou portas e janelas, desceu vagarosamente as escadas, olhou o pátio lá embaixo sentiu o aroma das flores e deixou-se ficar escondida atrás do alpendre. Não queria visitas. Não queria falar, responder, sorrir. Nada. Apenas ficar só. Reorganizar as idéias e decidir-se. Escolher. Dispensou os empregados e certificou-se com a cozinheira. Fome não estava em seus planos. Ordenou-lhe que fizesse algo especial, leve, frugal. Deu-lhe a chave da adega. Queria um bom vinho. E quando finalmente sentiu-se só, pegou da taça, sentiu a doce umidade do vinho em seus lábios e o prazer que isso lhe proporcionava. Era bom estar ali saber-se dona de toda aquela terra. Com o corpo e a mente mais leve pelo vinho deixou-se levar pelas recordações que foram naturalmente surgindo. Primeiro alguns lances da infância depois a juventude junto aos primos, os risos, os desejos, as insinuações e as festas noite adentro. O pai sempre austero, a mãe com aquele olhar sonso, agudo e finalmente seu casamento com Heitor. Derrepente um vento forte e uma janela que se abre o som dos carros, o movimento dos transeuntes, as conversas entrecortadas., os risos, os encontros, o ir e vir. A vida que corre lá fora pulsante, real. E , ela, ali, presa em seu minúsculo apartamento. No escuro de si, no vazio que construiu, enganando-se dia após dia, noite após noite. Por quê? Para que? Ficção travestida de realidade Eleonora a personagem criada, a propriedade que nunca teve a infância que sempre quis o pai que nunca conheceu e as festas que não viveu. Desejo e imaginação. Levanta-se lentamente e com toda força joga a taça de vinho. Cacos de uma vida inexistente.

domingo, 17 de outubro de 2010

"Olhar o mundo e olhar a si"



Jose Angelo Gaiarsa -1920 -2010- 
psiquiatra brasileiro.
 maravilhosos livros publicados
 destaco:
Couraça Muscular do Caráter
O que é Corpo?
O Olhar
 Sexo, Reich e Eu
A Inconsciência Coletiva

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

De beleza e partituras, ser professor.

Como disse Rita Lee, toda mulher é meio Leila Diniz. Sinto que a expressão pode ser estendida à questão da arte, do aprender e do ensinar , respeitando as devidas proporções, toda mulher, todo homem é “meio” Paulo Freire, o grande mestre. O tempo todo aprendemos com o outro e o ensinamos numa troca maravilhosa, a qual, Freire nomeou de a "Roda do saber".

Mas, não podemos esquecer de forma alguma que ser professor é uma profissão, e como toda profissão exige dedicação, conhecimento e acima de tudo paixão, uma imensa paixão. Ou, como disse o mestre Rubem Alves:


"Se fosse ensinar a uma criança a beleza da música não começaria com partituras, notas e pautas. Ouviríamos juntos as melodias mais gostosas e lhe contaria sobre os instrumentos que fazem a música. Aí, encantada com a beleza da música, ela mesma me pediria que lhe ensinasse o mistério daquelas bolinhas pretas escritas sobre cinco linhas. Porque as bolinhas pretas e as cinco linhas são apenas ferramentas para a produção da beleza musical. A experiência da beleza tem de vir antes"

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Nenhuma palavra dita


Saciada a sua ira e satisfeito o seu ódio Beatriz observava seus pés nos degraus. A chuva doce e mansa caia devagar seus pingos a bater na vidraça. A mudança de humor, os passos na escada, a observância desses pés e os movimentos de seu corpo era tudo o que possuía. Queria mais. A vida lhe negou ou ela não soube escolher. Já não sabia e isso era o que mais pesava o descobrir-se perdida, sem forças para a luta e amarga em seu viver. Figura carismática, boca carnuda, roupas claras e de chapéu Firmina esperava-a de braços abertos. Esse fato também pesava. A generosidade de Firmina, sua alegria contagiante, seu ser singular e exótico. Parada na ponta da escada com o luar a iluminar-lhe o semblante sorria. Um sorriso de boneca ou da boca que se alarga e toma conta do rosto inteiro. Beatriz nunca descobriu. A bem da verdade chegou a pensar que não era nenhum nem outro. Era só mesmo o brilho que Firmina possuía e que tanto a incomodava. Tornaram-se inimigas sem nenhuma palavra dita. E por mais que Firmina buscasse uma aproximação tudo era frio e distante. Com o tempo desistiu. E agora ali na sua frente depois de tantos anos Beatriz  dissimulava todo o seu rancor,  fingia uma vida que não teve e  tagarelava coisas e fatos inexistentes. Firmina  ouvia calada o relato da amiga, relembrava outros tempos , momentos da infância quando ambas rindo corriam para a praça ver o teatro chegar. Eram noites de muita alegria quando assistiam ao espetáculo. Beatriz vibrava com a bailarina, com seus sapatos prateados o corpo a girar, girar lentamente. Mas tudo também se transformou lentamente. Em que momento Beatriz ficou assim? Qual acontecimento desencadeou esse sentir, ou melhor, esse não sentir? Impossível sabê-lo.
Apenas que Beatriz é nada. É um corpo adormecido. Já não sorri, não vibra com bailarinas, danças, sapatos prateados. Agora tudo o que precisa é do brilho do olhar de Firmina.


terça-feira, 12 de outubro de 2010

"Um "pouquinho" de Teoria Literária"

“O homem é o ser que se criou ao criar uma linguagem. Pela palavra, o homem é uma metáfora de si mesmo.”
 Octávio Paz.


Uma das maiores crises de nosso tempo é a crise da linguagem. A perda da palavra, a perda da expressão própria, a perda da comunicação autêntica, a perda de uma linguagem pessoa e criadora. Essa é uma das mais profundas desfigurações da segunda metade do século XX. E um dos maiores paradoxos da nossa era: vivemos cercados de sistemas de comunicação, temos os maiores e mais complexos instrumentais da comunicação e toda a história, e ao mesmo tempo, nunca tivemos tão pouco a palavra própria, a expressão pessoal, uma linguagem que expressasse e encarnasse nossa identidade pessoal, uma comunicação verdadeira em que mutuamente nos reconhecêssemos. A perda da palavra. A morte da linguagem. As falas cada vez mais neutralizadas. Uniformizadas, Cada vez mais insignificantes. Estereotipadas. Reduzidas ao informe homogêneo. Cada vez mais sem voz, o homem contemporâneo tem dissolvida sua linguagem e sua identidade pessoal e pública. A inconsistência da linguagem, das imagens, da história , da vida.
Penso em Ítalo Calvino
Ás vezes me parece que uma epidemia pestilenta tenha atingido a humanidade inteira em sua faculdade mais característica, ou seja, no uso da palavra, consistindo essa peste da linguagem uma perda de força cognoscitiva e de imediaticidade, como um automatismo que tendesse a nivelar a expressão em fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a embotar os pontos expressivos, a extinguir toda centelha que crepite no encontro das palavras com novas circunstâncias. O vírus ataca a vida das pessoas e a história das nações, torna todas as histórias uniformes, fortuitas, confusas, sem princípio nem fim. Meu mal-estar advém da perda da forma que constato na vida, à qual procuro opor a única defesa que consigo imaginar-uma idéia de literatura”. Ítalo Calvino

É preciso redescobrir e revivificar a linguagem. Renascer a linguagem significa também renascer a dimensão que se revela ao mesmo tempo raiz e utopia das palavras, e que tem tido imemorialmente – o nome de poesia.

 

terça-feira, 5 de outubro de 2010

"A surpresa do ser"


Se a filosofia nunca soube ao certo o que é o ser (a metafísica ocidental só fez oculta-lo ainda mais), em Heidegger ele ressurge iluminado pela linguagem poética. A poesia é a “casa do ser”; só através dela é possível comemorá-lo sem perdê-lo de vista; só ela é capaz de evocá-lo em seu movimento fulgurante. O ser é uma surpresa que os poemas ajudam a vislumbrar. Seis séculos antes de Cristo, a filosofia nasce justamente em confronto com a poesia (e seus mitos), que antes de emancipar-se como forma autônoma destinava-se à revelação do sagrado. A idéia heideggeriana de que a poesia nos lembra o ser encontra-se em sua “Carta sobre o humanismo”, a qual se encerra com estas palavras: “na presente indigência do mundo é necessário: menos filosofia e mais desvelo do pensar, menos literatura e mais cultivo da letra”. Orides Fontela provavelmente pensava nisso quando disse num depoimento: ‘Nossa época é terrível, somos poetas em tempo de desgraça”. Orides se foi. Já não presencia os infortúnios de nosso tempo nem deles participa, mas sua poesia cristalina continua exercendo o “desvelo do pensar” e o “cultivo da letra”, de que fala Heidegger, provocando o ser à luz da linguagem. Aliás, do que mais se ocupam seus poemas? Orides fontela, como Paul Celan, é daqueles artífices que clareiam o ser ao mesmo tempo em que propõem uma indagação essencial sobre o ser da própria poesia. Ler sua obra é constatar que o ser em geral, no sentido heideggeriano, questão sempre aberta, e o ser lucífugo da poesia têm idêntica irradiação. Ambos podem nomear-se como aquilo que não se sabe ao certo o que é, mas que se deixa perceber no mesmo instante em que se furta como pedra filosofal da leitura. “Natureza ama ocultar-se”, conforme o célebre fragmento de Heráclito.

Artigo postado, na minha coluna mensal, no Imaginário Poético com  o poema "Fala" de Orides Fontella.
Referências bibliográficas:
BORGES, Contador. A surpresa do ser. In Revista Cult/novembro 1999.
FONTELA, Orides. Poesia Reunida [1969-1996] São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006