sábado, 31 de janeiro de 2009

Um homem sem trabalho é como uma árvore sem fruto- sueliaduan

Entro no beco como todos os dias, no finalzinho do dia ao entardecer, o sol se pondo e uma leve brisa pairando no ar.
Entro no beco como quem caminha por uma imensa avenida e, perplexo depara-se com um girassol.
Não há girassóis nas avenidas, não há becos sem melancolia.
Há um marasmo, uma lentidão nos movimentos, uma falta de energia, uma desocupação tardia.
Há homens parados nas portas dos bares, há crianças descalças pelas ruelas com suas bolinhas de vidro, sonhos quebrados. Mulheres com suas panelas. Algumas vazias.
Um aroma de tabaco, fumaça e comida.
Longe do beco há movimento, ocupação.
Um homem sem trabalho é como uma árvore sem fruto, um corpo sem alma. Um dia vou ter uma profissão.
É um sonho que acalento desde menino, quando via meu avô com suas ferramentas, seu sorriso largo, a inventar coisas. Vô era homem sábio, quieto, não conversava muito.
Gostava mesmo era de contar causos, histórias. Algumas vezes cheguei a sentir medo das suas crenças, suas rezas. Coisas de menino da cidade.
Ele percebia e me acalmava. É só uma história, Dão Dão, falava com seu jeito carinhoso, e mudando de assunto dizia:
_ ocê sabe, minino, qui gente tem qui gostá du qui faiz, anssim trabaia cum gostu.
Eu sorria. E ele pegava o serrote delicadamente. Encostava-se à madeira e começava a trabalhar. Quase um ritual. Parecia até que ia tocar um instrumento, assim como um violino. Sabe que o som parecia mesmo uma melodia.
Eu fechava meus olhos e, ali sentado no banquinho ficava a me embalar com o ritmo do serrote na madeira. Imaginando o dia em que eu, com minha oficina faria muitos, muitos, muitos trabalhos.
No meu sonho de menino via meu nome em letras bem grandes:
Marcenaria do Dão Dão
Como diziam os vizinhos meu avô era um artesão de mão cheia. Ele era um criador, dizia minha mãe.
E eu, no meu entendimento de criança, pensava, meu avô é Deus. Esse pensamento deixava-me feliz, alegre mesmo, saber que a gente pode trabalhar e criar coisas. Ser Deus.
O tempo passou, meu avô morreu e, a marcenaria foi só um sonho. Não aprendi a ser um criador, um fazedor como ele falava.
Entro no beco como todos os dias, no finalzinho da tarde o sol...
Volto da cidade. Trago comigo a alegria contagiante da ocupação, do vai -e -vêm das pessoas, das lojas, das oficinas, do burburinho dos cafés, dos homens engravatados, das mulheres elegantes, dos restaurantes com seus aromas.
Tabaco, fumaça e comida.
Trago comigo o sonho de menino de ser um criador, um fazedor de mão cheia.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

REPONDO


Compor, repor, depor.
Compor a vida.
Repor as perdas.
Depor a favor, sempre,
da alegria,
da festa,
da amizade.
É preciso reinventar:
figuras amadas, cidades verdes.
Calar a noite.
Trégua.
Ouvir o silêncio,
a chuva.
Ser
paz

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

"o meu filho .....' "Angela Barros"

Observância - sueliaduan

Observo a xícara,
que sinto ao observá-la?
Uma xícara.
Apenas uma xícara,
apenas um quadro,
apenas uma fresta,
Apenas esse som melancólico.
Apenas o existir.
O tempo parado nesse quarto.
A solidão do ser.
A certeza de ser só, só
com o sentido das palavras,
explicação do mundo.
E a xícara?
Branca, porcelana.
O bem - estar do chá.
A dor do pensamento.
Não cabe na xícara, não sai pela fresta.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Não nos damos conta, Quitéria- sueliaduan

Ás vezes sentimos uma tristeza, dessas que não se consegue chorar, por maior que seja nosso esforço, por mais que tentemos, secamos. Nem uma lágrima brota dos nossos olhos. Parece que qualquer movimento, um único virar de rosto, ou piscar de olhos, vai doer mais.
É como se a gente quisesse parar tudo em volta.Paralisar o tempo.
Talvez seja assim mesmo, e nós que não nos damos conta. Tudo pára dentro da gente, lá no fundo do nosso ser. Só um vazio, uma nonada, um não querer.
Foi assim que vi Quitéria naquela tarde, naquela hora da tarde mais precisamente.
O rosto fechado e o olhar parado. Com passos lentos, veio em minha direção. Tinha os cabelos escorridos, os lábios entreabertos parecendo que queria dizer algo, um andar bambeante, quase um arrasto, uma dor sem fim.
E eu fiquei ali olhando para ela, olhando através dela sem fazer nada, imóvel. Por uns momentos tive a sensação que não existia. Eu não estava vivendo. Não podia mesmo, falar nada, não havia nada a ser falado.
Minhas dores eram outras, não tão cruas, tão puras como as dela.
Havia um silêncio pairando no ar, e as poucas lojinhas da pacata cidade já estavam começando a fechar-se. O relógio da matriz marcava 17h.45. Aquele finalzinho de tarde, igual a tantas outras tardes tornou-se a mais diferente de todas as tardes de minha vida.
E ainda, hoje, passado tanto tempo, quando me recordo daquele dia, vejo que ele foi o mais marcante, o mais doloroso de todos já vividos.
E já vivi muito, mas por mais que viva nenhum outro olhar será como o de Quitéria. Nenhuma outra dor se igualará a dela. Nada, nunca.
Só seu olhar continua cravado fundo em mim, doendo em mim.
No fundo também acho que somos nós que não nos damos conta. Tudo é sempre muito igual. Os dias, o ir e vir, as horas passando, o trabalho feito O que tem valia mesmo é a nossa emoção. É o cheirinho do café passado na hora, o cãozinho latindo ao longe, uma brisa suave a nos refrescar, tardes a conversar, ouvir a chuva batendo nos telhados, escutar criança chorar. Essas coisinhas. Acho que é só isso mesmo o que conta. O resto é enfado, canseira, obra do tinhoso, como diz o povo daqui, como disse Quitéria.
E pensando bem, acho que a gente é que não se dá conta de tudo isso mesmo, e o abraço morre antes da junção dos corpos, e sobram palavras, palavras, palavras.
Hoje me pergunto por que não abracei Quitéria, não a acolhi em meus braços, acarinhei seus cabelos.
Tudo tão simples. Somos nós que não nos damos conta da simplicidade do gesto modificando a vida.
Na minha memória as palavras pausadas de Quitéria quase sussurrada, um sopro, um quase gemido, um pedido de socorro:
_quem que ponho curagem pruma barbaridade dessa, uma farta de amor tão inorme, que homê ou muiê vive despois do acontecido
E eu ali, tentando entender, raciocinar. Perplexa não derramei uma lágrima.
Mas doeu. Não sei o que me machucou o fato ou Quitéria. Acho que os dois, que tudo, a própria impotência nossa diante do imprevisto, diante da tragédia.
E foi uma tragédia.
A poeira que levantou, o barulho das patas no chão, o relinchar, os berros das pessoas, a agonia, o sangue no chão... o choro, tudo meio misturado assim mesmo. Não parecia real.
Aquele cavalo, forte, desembestado, o menino pendurado, preso pelas amarras do arreio, se debatendo entre pedras e pedregulhos, os lábios já cortados, ensangüentados, a pele das pernas já corroídas...
Nada parava aquele animal. Era obediente a ordem dada. E ela foi dada:
_ corre, corre Untu. Ele correu. Nada iria fazê-lo parar, conhecia a voz do dono gritando:
- corre, corre Untu.
Vingança estranha essa, ferir o filho pra atingir a mãe.
Quitéria chorou, chorou, chorou e, de repente, parou. Não quis mais saber do amante, tão louca era por ele. Tudo perdido. Por quê foi assim? Que sentimento era esse?
-que homê ou muiê vive despois do acontecido.
Essas palavras ainda fervilham em minha mente.
Eu vivi, Vivi?

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Milton Nascimento - Caetano Veloso - Terceira Margem do Rio

ah. esse "Guimarães"...

...Quanto mais ando, querendo pessoas, parece que entro mais no sozinho do vago...foi o que pensei na ocasião. De pensar assim me desvalendo. Eu tinha culpa de tudo, na minha vida, e não sabia como não ter. Apertou em mim aquela tristeza, da pior de todas, que é a sem razão de motivo; que, quando notei que estava com dor-de-cabeça, e achei que por certo a tristeza vinha era daquilo, isso até me serviu de bom consolo. E eu nem sabia mais o montante que queria, nem aonde eu extenso ia.
Grande Sertão: Veredas - J.G.ROSA.

terça-feira, 13 de janeiro de 2009

Diotímia o corpo do livro - sueliaduan

Diotímia atravessara a rua com passos largos, mãos trêmulas, olhos atentos movendo-se de um lado a outro, respiração ofegante.
A rua em torno era ensurdecedora. Claridade e calorão. Tudo conspirava ,a loja da esquina com seu cheiro de incenso, a velha na calçada pondo os óculos. Por um momento teve a sensação que era observada.
Na verdade, Diotímia nunca se acostumara à cidade, o corre-corre das pessoas, o barulho.
Saia pouco, às vezes era necessário. E, também tinha os biscoitos que Jorge deixava pronto às terças-feiras. Pequenos prazeres a que se permitia.
O resto do tempo ficava mesmo em seu quarto. Tempo de leitura e solidão.
O quarto era iluminado, branco, paredes caiadas; uma cama, criado-mudo o guarda-roupas, os livros. Era o que tinha e lhe bastava.
No começo, quando chegou sua estranheza tinha explicação, mundo dos símbolos das palavras, a cidade assustava e, Diotímia não sabia ler. Mas agora passado tanto tempo. Como podia? Aprendera a ler, um curso à noite, desses rápidos, mas viu seu crescimento passo a passo. Mudança e alegria ao perceber o sentido das coisas, e até compreendeu melhor as lágrimas de Tarsila.
A velha firmou mais o olhar, tirou os óculos, voltou a pô-los. Diotímia tremeu, pensou em desistir em voltar, afundar-se em sua poltrona verde oliva, cobrir-se com a manta tecida pela mãe há tanto tempo, com tanto carinho.
A lembrança dessa imagem misturada à voz doce da mãe encorajou-a seguir
Não sem dor, mas seguir.
O problema está em escolher. Sempre a escolha. Isto ou aquilo, vermelho ou azul, rosas ou margaridas.
Que importa? Agora nada lhe faltava. Gostava de viver só. Nem mesmo a morte do irmão ainda pequeno; o pai cuidando do gado sozinho, consertando cerca pro boi não fugir; cortando lenha que mãe pedia, mesmo sem precisão.
Homem paciencioso pai, tia Jacobina andando a esmo pelo vale; a casa cercada de varandas e um grande céu por cima.
Nada disso afetava Diotímia em sua nova vida na cidade.
Lembrou-se de Tarsila, irmã mais nova, que comprara um vaso novo com tulipas para enfeitar a varanda na esperança que tudo se transformasse. E transformou.
Eram tardes longas, deliciosas, em que ambas sentavam confortavelmente olhando lá longe as folhas douradas das árvores caídas por todo o chão.
Tarsila lia com sua voz rouca, seu jeito de balançar a cabeça em uma ou outra parte do livro, como que emocionada pela narrativa.
Às vezes os olhos enchiam-se de lágrimas tamanha emoção, nessas horas procurava os olhos de Diotímia como um pedido de socorro, como alguém que pede um favor, um copo d´água. Diotímia empertigada na poltrona parecia feita de pedra.
Tarsila voltava rápido para a leitura. Não compreendia essa mulher ao seu lado. Mulher criada na roça com a enxada, só chorava quando não chovia, e a lavoura ardendo na terra, se perdia.
Essas imagens em sua mente. Por quê? Há tanto não pensava na irmã, na sua morte repentina.
Morte sinistra, fora encontrada com o corpo todo comido pelos bichos, as folhas das macaúbas caídas sobre seu ventre disforme. Parecia um tapete de musgos e liquens, um convite à orgia, ao amor; o povo dizia ser coisa do tinhoso, do cão.
A varanda .... as leituras .... aquela tarde triste, quando os homens chegaram, as coisas sendo carregadas no caminhão.... a sopeira de tia Jacobina, a cristaleira .... os enfeites de mãe...
Tarsila parando a leitura bruscamente, olhando nos olhos do pai de cócoras no canto da sala, que feito criança, soluçara ali mesmo. Mãe só xingando, nunca viu mãe tão brava.
Por quê meu Deus? Essas lembranças, justo no momento que estava decidida. Só podia ser do coisa ruim. Que fosse.
A faca em suas mãos luzindo, o desejo de encravá-la, de ver o sangue quente escorrendo formando uma poça, seu cheiro forte feito a boi morto. Angústia de mulher valente resgatando coisas que se perderam, diluídas no tempo.
Diotímia acelerou mais os passos com medo que todas essas imagens a detivessem e, dobrando a esquina avistou a casa. Coração apertado. Tocou a campainha.
O homem que abriu a porta tinha um olhar cansado, quase não o reconheceu.
Olharam-se sem nada falar. Diotímia recuperando-se entrou na ampla sala. As dores do passado abrindo caminho: os ciúmes da irmã, a mágoa pelo pai que desde cedo dera lhe a enxada como sina traçada.
Tudo ganhando relevo, tomando conta do espaço numa explosão de culpa, ódio, rancor.
E, novamente a voz de Tarsila, suas estórias, cheias de significado, transformando tudo em volta.
Diotímia, já não era mais aquela mulher empertigada, percebia o mundo, compreendia o coração dos homens.
Tudo lhe faltava: o irmão morto, o vaso com tulipas, a cerca pro boi, tia Jacobina, a vida da fazenda.
Experiência singular em que Diotímia abraçando o corpo do pai, descobre o corpo do livro.

domingo, 4 de janeiro de 2009

Um só sentido...



Descartes professou a doutrina das idéias inatas; Etienne Bonnot de Condillac, para refutá-lo, imaginou uma estátua de mármore, organizada e conformada como o corpo de um homem, e residência de uma alma que nunca teria percebido ou pensado. Condillac começa por atribuir um só sentido à estátua: o olfativo, talvez o menos complexo de todos. Um cheiro de jasmim é o princípio da biografia da estátua; por um instante, haverá unicamente esse cheiro no universo, melhor dizendo, esse cheiro será o universo, que um instante depois, será cheiro de rosa, e depois de cravo. Que na consciência da estátua haja um cheiro único, e já teremos a atenção; que perdure um cheiro quando o estímulo tiver cessado e teremos a memória; que uma impressão atual e outra do passado ocupem a atenção da estátua e teremos a comparação; que a estátua perceba analogias e diferenças, e teremos o juízo; que a comparação e o juízo ocorram novamente, e teremos a reflexão; que uma lembrança agradável seja mais vívida que uma impressão desagradável, e teremos a imaginação. Engendradas as faculdades do entendimento, as da vontade surgirão depois: amor e ódio (atração e aversão), esperança e medo. A consciência de ter passado por diversos estados dará à noção abstrata de número; a de ser cheiro de cravo e de ter sido cheiro de jasmim, a noção do eu.
Em seguida o autor atribuirá a seu homem hipotético a audição, o paladar, a visão e por fim o tato.
Este último sentido lhe revelará que existe o espaço, e que no espaço ele estará num corpo; os sons, os cheiros e as cores, antes dessa etapa, haviam lhe parecido simples variações ou modificações de sua consciência.