quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

da série: Fração de segundos


Era aquele barulho de brocas e britadeiras, de manhã à noite, deixando os nervos à flor da pele. Ele acostumara-se com uma facilidade que, na época, eu sentia como pura provocação. Mal entrava no apartamento e já ligava o som. Cheguei mesmo a duvidar que gostasse de música. Quem em sã consciência teria esse comportamento? Às vezes eu ficava escondida, só observando suas atitudes, e foi justamente numa dessas observações, fração de segundos, que presenciei a cena mais absurda da minha vida: ele com uma voz quase em sussurro, uma nota de cinqüenta na mão, dizendo ao rapaz que acabara de entrar:  Amanhã, vê se capricha com as britadeiras. Ela está quase louca.


sábado, 14 de janeiro de 2012

da série: "Fração de segundos"


Quando chegou ele estava deitado na cama, imóvel, os olhos fixos no teto, as mãos sobre o estômago, calçava só um tênis, o outro jogado no chão todo sujo. Entrou com cuidado, com passos lentos. Já o imaginava em casa. Abriu a porta tentando fazer o menor barulho, conseguiu. Mas não pode conter as lágrimas que a imobilizam de qualquer atitude.

Ali parada, sem ser notada, relembrou outros momentos. Eram felizes. Um leve sorriso formou-se. Bons tempos pensou. Mas não soube explicar, a si mesma, porque em sua mente formava-se aquele pensamento. Feito um passe de mágica seu sorriso desapareceu, ato contínuo tentou sair dali, mas seus pés pareciam colados ao chão e seu corpo endurecido como uma estátua, somente as mãos mesmo obedeciam ao seu comando. Foi quando abriu a bolsa, fração de segundos, e disparou o revólver que atingiu o corpo inerte sobre a cama.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

da série: Tenho um amigo que disse que eu:

                                    

Diferentemente de muita gente que ele conhece não tenho por hábito programar, planejar, estabelecer metas, aliás, característica de todo ser humano sensato. E, é justamente isso que ele não compreende: — essa minha mania em querer ser diferente. Fiquei pasma com a observação. Primeiro, porque creio que ela é totalmente equivocada. Diferente do quê? De quem? Segundo, porque tenho lá sim minhas manias. Quem não tem? E terceiro: — Sensata. Planejo, estabeleço, impossível viver ao Deus dará, creio eu.

Já um outro amigo, não por solidariedade, mas por compreensão mesmo disse que entendeu perfeitamente à colocação do amigo incomum. E completou: — é esse teu jeito tranqüilo de ser que deixa essa impressão na gente. Novamente fiquei pasma. Primeiro, porque creio que ela é totalmente equivocada. Tranqüilo com o quê? Com quem? Segundo, o que tem a ver ser tranqüilo, não que eu não seja, com o fato do sujeito ter atitudes necessárias para o bem viver. E terceiro: — tranqüilidade e sensatez andam de mãos dadas, creio eu.

Já um outro amigo, conhecedor profundo da minha leveza frente à resolução das coisas , e com seu jeito poético de ser argumentou:— coisas de gente que mistura movimento e repouso; barulho e silêncio; amor e sexo; alegria e tristeza; vida e morte. Busca disciplina, métodos, faz planos, projetos... Sonha. E, vorazmente dedica-se a eles até a sua concretude, e depois busca outro... e outro... e outro, infinitamente.
Dessa vez não fiquei pasma.