quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Campânulas Vermelhas...


Na primeira parada deixou claro, feito à lua que iluminava aquelas viagens sem fim, que só é gente aquele que não careça de nada, que a tudo agradece ao nosso senhor Jesus Cristo e na dor enxerga a bondade divina. Sua voz doce é um canto de ninar aos ouvidos da mulher em que hoje me transformei. E trago comigo, como num cofre, cada uma dessas paradas.

Essa sempre foi a palavra de mãe:- descansar. Como se a gente pudesse tirar o cansaço do jeitinho que se tira um chinelo e deixa ao canto. Mãe acreditava nisso e dizia: — Ponhei meu zoio nu sem fim da mata e junto com o chero bão sinti um repio nu corpu. Não careçe de coisa mio não. Mas eu carecia. E o cansaço era só daquela vidinha mesmo. Eu gostava sim do cheiro do mato, da chuva e daquelas tarde de domingo, em que pai sentado na varanda contava histórias, e mãe sempre nos surpreendia com seus doces e manjares. A vida era assim tranqüila por demais.

E se tem coisa que trago desde minha meninice e o gosto pela aventura. Descobrir, conhecer, saber. Mãe nunca entendeu esse meu jeito, mas mulher amorosa que era sempre respeitou minhas escolhas. Em seu silêncio eu sentia carinho e aprovação, pois ela sabia: — a vida toda seria assim para mim. Na estrada, hoje, em meio às campânulas vermelhas, samambaias, avencas e o cheiro da terra molhada, sua imagem, seu canto doce seu silêncio misturaram-se as minhas alegrias.
Não careço de nada,por ora.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um olhar poético na prosa de Clarice Lispector


"Sempre tive um profundo senso de aventura, e a palavra profundo está  aí querendo dizer inerente. Este senso de aventura é o que me dá o que tenho de aproximação mais isenta e real em relação a viver e, de cambulhada, a escrever"
Clarice Lispector

Um olhar poético na prosa de Clarice Lispector", título de uma oficina que ministrei em 2003, na Oficina Cultural Grande OTELO, uma emoção, uma honra , um grande aprendizado, pois seus livros oferecem um mergulho no indivíduo - o ser particular. Olhar arguto e sem condescendência, mas carregado de afeto, sobre nossas mazelas, contradições, medos e gestos de amor e grandeza.

O que buscamos na oficina foi captar esse olhar , o momento poético, registrá-lo, vivenciá-lo. Perceber em que medida as personagens de Lispector nos incitam à viver nossa cotidianeidade como homens e mulheres inseridos numa identidade global ainda que únicos, singulares.

E esse ano, na direção da Cia Travessia-  O ato de ler um encontro com o outro - Sarau Lítero -Musical", inseri no projeto um conto de Lispector, "Felicidade Clandestina", interpretado pela atriz Quitéria Maria. Belíssimo momento do espetáculo.

..."Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada"
Clarice Lispector
( e eu)
(rs)

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

De silêncios, sustos e olhares.

 
Tomou-me tempo e desânimo aquela viagem, mas era uma questão de escolha. E não tem jeito, a gente já sabe, o coração fica apertado mesmo. Além do esforço que era obrigada a fazer para que meus olhos não se fechassem, havia a questão da pouca luminosidade. Mas fazer o quê? Fui informada que seria assim. Voz doce a sussurrar em meus ouvidos: — Mire, veja... Mire... veja.

Do momento em que eu, confortavelmente, me instalasse na poltrona as mudanças ao meu redor seriam imperceptíveis. Uma longa jornada feita de silêncios, sustos e olhares. No começo, o medo me dominou. Sentia a respiração ofegante, o suor escorrendo pela testa, mas em momento algum pensei em desistir. O jeito era fechar os olhos, relaxar e assim, quem sabe, ao olhar novamente o medo tivesse se dissipado. Não importava quantas vezes isso se daria.

E tive a nítida sensação que seria a vida toda. O espelho que firmemente segurava entre minhas mãos trazia um esboço do meu rosto, um quase rosto. Através dos espelhos comecei a procurar-me. Eu por detrás de mim à tona dos espelhos. E aos poucos, uma imagem ia se formando. Já não era mais um quase, mas uma forma luminosa de um rosto que se sabe.

domingo, 27 de novembro de 2011

Insólito aconteceres

Era só uma porta, fechada. Não fosse o esquecimento do número,  exatidão de mundo  a mim distante,  e uma pequena movimentação nos corredores eu diria que minha figura ali era no mínimo risível.

A angústia que seguiu à abertura da porta, ainda que rápida, povoaram minha mente de recordações da infância, e eu relembrei meu pai sempre sentado em muros, muretas, corredores; minha mãe sempre a gritar com o cachorro que, porta aberta, adentrava em busca de um afago, um carinho.

Sempre as portas. Sempre essa busca. Seres frágeis que somos, sedentos de beijos úmidos, palavra/poesia, sussurros noite adentro.
Esse insólito do viver.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

da serie Tenho um amigo que disse que eu:


Ando nas ruas como se estivesse no ar, pisando nas nuvens. Não é aquele meu amigo que já comentei, aqui, várias vezes não. Ainda que ele também tenha falado algo semelhante, mas de lá pra cá mudei muito. Aliás, a gente muda com o tempo, ou melhor, a cada momento, a todo instante. Não que isso seja problema, creio eu. E também nada a ver com ser volúvel, inconstante, não ter opinião formada e por aí. E tenho um amigo, ou melhor, nunca nos conhecemos pessoalmente, mas eu o admiro tanto que, ouso chamá-lo de amigo, nas minhas noites de insônia são suas músicas que me tocam profundamente: — “eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre todas as coisas.”

Já outro amigo disse que não é nada disso — é que minha maneira de andar está envolta em um grande mistério e que isso fica impregnado no caminho por ando passo. Nossa que susto, numa pensei que o simples ato de andar pudesse provocar tanto. Mas provoca. E a bem da verdade, seja lá o que isso quer dizer, não concordo com esse amigo não, pois todos estão envoltos em grande mistério. Não só eu. É que cada pessoa tem seu jeito singular de caminhar, uns mais rápidos, apressados com seus infindáveis compromissos e envolvidos com o intenso movimento da cidade; outros com seu caminhar lento, compassado, feito eu, absortos com a paisagem com a beleza do movimento ou matutando algum pensamento, relembrando momentos.  E não é que nesse exato momento chegou meu velho e bom amigo que, todo prosa foi logo dizendo: — caminho e caminhante o que importa mesmo e enxergar além do que se vê. Eu ri  aquele meu rizinho que começa no cant......


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Lá fora, o dia. (De corpos e esmaltes)


Corpo ereto, cabelos cuidadosamente desarrumados , ar blasé, e vestida de vermelho ela descia as escadas lentamente. Equilibrando-se no salto da sandália preta não ousava segurar no corremão. O esmalte ainda úmido podia borrar, e se tinha uma coisa que ela não admitia era mulher descuidada. Costumava dizer que era natural esse cuidado todo, um ato corriqueiro, quase automático. Não fossem os muitos elogios que recebia: — bela, deslumbrante, gatíssima e uma infinidade de adjetivos dos mais simples aos mais sofisticados, alguns até em outro idioma.

E ela se deixava levar toda orgulhosa. Mas era compreensiva e sabia que nem toda mulher podia se dar a esses pequenos luxos, e na sua imensa delicadeza segredava à amigas seletas — entendo perfeitamente, é uma questão de tempo. E se tinha uma coisa que ela não abria mão era da sua liberdade. Levantava cedo só para ter o prazer de ler o jornal - das notícias que aconteciam do outro lado do mundo, à  um cachorrinho perdido, tudo lhe interessava. Botânica, gastronomia, moda, filosofia, literatura, cinema....

E naquela noite, como em tantas outras, ela descia lentamente as escadas mais bela que nunca. Vestida de vermelho, pronta para mais um deliciosa festa noite adentro. Era tudo que queria ,que precisava. Viver, dançar, sorrir.  Ser. E num gesto tresloucado, inesperado seus dedos tocaram com força o corremão. Com o esmalte todo borrado um olhar vago, distante, úmido e  as mãos trêmulas,  acordou. 
O dia amanhecia lá fora . Era preciso correr.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

da série- Tenho um amigo que disse que eu:


Sou oito ou oitenta; quente ou frio e que comigo não há meio termo não. Eu ri aquele meu rizinho que, começa no cantinho esquerdo da boca e vai lentamente se abrindo, na realidade e mais um mover de lábios mesmo. Um riso quase imperceptível, eu diria, para raros observadores. O que não é o caso desse amigo, pois está sempre na superfície das coisas, ler nas entrelinhas nem lhe passa pela cabeça ainda que cante aos quatro cantos suas proezas meditativas. Mas amigo é amigo e a bem querência nos faz relevar esquisitices, pois temos as nossas.

Já outro amigo disse que é exatamente o contrário — sou é água morna dura de ferver. Lembrei-me do meu pai na hora com seus olhos brilhantes e sua voz rouca, naquelas tardes de outono quando sentávamos na varanda e eu em silêncio ouvia seus ensinamentos. Conhecedor do que ia dentro de mim sabia de minhas tristezas só pela maneira como eu bebia o chá ou mastigava um pedaço de bolo, ou ainda, da minha perplexidade frente a um mundo feito de aparências. E se por um lado, como pai, preocupava-se com minhas escolhas, como amigo, sabia que eu não podia fazer diferente, pois, tanto para ele quanto para mim nunca houve oito ou oitenta, certo ou errado, mas descobertas. Busca para ser como se é. Pelo caminho do meio onde os extremos passam longe e a água ferve lentamente.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

"...Que faça acordar os homens..."

Canção amiga

Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem ama ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.



Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.



Canção Amiga"- é um poema no qual Drummond expressa o ideal de construir uma poesia capaz de despertar a consciência dos adultos e servir de canção de ninar para as crianças.

A melhor forma de homenagear o poeta, creio, é tentar ler com profundidade a sua poesia

terça-feira, 18 de outubro de 2011

Minicontos



Bela Viola
Nossa! Que homem bonito! Que porte, que olhos, que cabelos! Isso não é um homem, isso é um deus grego, grego não, babilônico. Que maravilha!! Sorridente e feliz, João mandou-se um beijo estalado, saiu do espelho e partiu prás baladas.
Fredy Nabhan

Sexo explicito
O outono chegou entre brisas e desejos. A árvore se despiu apressada .(Fizeram amor em plena rua)
Fredy Nabhan


O Boto
Na beira do igarapés o boto se fez homem e engravidou a pobre donzela. Além da lua, eu  fui a única testemunha. Mas foi ela quem me seduziu.
Ary Roberto Souza Pinto


A Correria
Marilson estava de costas quandoo gatilho foi acionado. Nada viu. Somente ouviu o estampido. Todo mundo saiu correndo. Porém, por decisão do destino, foi ele quem recebeu a medalha de ouro da maratona
Ary Roberto Souza Pinto



Exercícios propostos em sala -Tatuí.

sábado, 15 de outubro de 2011

Professor, um encontro com o outro

Disponibilidade à vida e a seus contratempos. Estar disponível é estar sensível aos chamamentos que nos chegam, aos sinais mais diversos que nos apelam, ao canto do pássaro, à chuva que cai ou que se anuncia na nuvem escura, ao riso manso da inocência, à cara carrancuda da desaprovação, aos braços que se abrem para acolher ou ao corpo que se fecha na recusa. É na minha disponibilidade permanente à vida a que me entrego de corpo inteiro, pensar crítico, emoção, curiosidade, desejo, que vou aprendendo a ser eu mesmo em minha relação com o contrário de mim. E quanto mais me dou à experiência de lidar sem medo, sem preconceito, com as diferenças, tanto melhor me conheço e construo meu perfil .
Paulo Freire
1999



Professor, um encontro com o outro

Uma palavra veemente, e ao mesmo tempo suave, que muitas vezes ouvi quando menina: — leitura. Ler tornou-se assim algo constante em minha vida. A princípio somente uma maneira deliciosa de afastar-me de tudo e de todos. Mas como o tempo tornou-se uma necessidade vital. Ler, então, era o meu maior prazer.
Passava horas e horas na biblioteca ou mesmo no fundo do quintal embaixo da velha mangueira com o livro que, às vezes, chegava a cair das minhas mãos tamanho o cansaço. Acordava assustada com minha mãe que sorrindo fechava o livro. E eu seguia cambaleando para dentro de casa a sonhar como o final da história

Hoje relembrando esse fato penso que tornar-me professora, já estava presente na minha infância não só pela paixão aos livros, mas por acreditar no sonho, no diálogo, no questionamento, na flexibilidade e no envolvimento com as pessoas.
Na época eu não tinha a exata noção do significado dessas palavras na vida de todos nós seres humanos, mas foi através das brincadeiras com os amigos que vivenciei cada uma delas: — no faz de conta dos sonhos, nas conversas e acordos, na aceitação das nossas diferenças e no desejo de estar juntos.

Às vezes percebo coisas que faço em sala de aula que aprendi nas brincadeiras da infância, a infinita curiosidade que eu tinha em descobrir palavras novas, em observar o contorno de cada uma delas, em recortar dos jornais palavras belas e depois no silêncio arranjá-las quase a formar versos. Estão presentes, nas situações que crio hoje com meus alunos, futuros professores, quando os instigo a pesquisar incansavelmente prosa e poesia de grandes autores, no exercício diário da arte da escrita, na paixão pela palavra e no prazer inenarrável da reflexão.
Ser professor é um grande desafio. Desafio próprio da profissão. Para mim, é também um caminho, um belo caminho, um encontro comigo mesmo, com meus questionamentos, com minha visão de mundo, e, que de uma maneira maravilhosa me possibilita o encontro com o outro.
Um grande aprendizado.
 
 

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Iniciação

Foi num cinema poeira que achei os cigarros, esquecidos na poltrona ao lado. Não me lembro da marca, mas lembro que o filme era de Flash Gordon. Fumei tres seguidos no banheiro acanhado.
Um coroa de óculos escuros acendeu pra mim. No mais, só me lembro da tosse, da mão do cara no meu sexo e da nota de dez que ele me deu, depois.

Foi asim que, num só día e pela primeira vez, fui fumante e prostituto entre naves estelares e pistolas desintegradoras na face ocidental do planeta Mongo.


Fred Nabhan- poeta (de mão cheia) e ex- integrante do  grupo "O Tablado", atualmente é meu aluno na Oficina em Tatui. O miniconto é fruto de um exercício proposto em aula.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Semper vivium


Viver é, para a Biologia, em suma, simplesmente manter um metabolismo, produzir energia quando comemos ou respiramos.
Mas, nessa nossa vida corrida, das noites mal dormidas, das manhãs acordadas de sobressalto e das tardes paradoxalmente atribuladas em monotonias cotidianas, quantos de nós estão apenas existindo, sem saborear a unicidade do momento ou respirar a dádiva da liberdade?
Quando foi a última vez que você olhou para o céu?
Mais corriqueiro e menos clichê que isso; quando foi que disse: “bom dia!”, assim mesmo: com exclamação no fim: “bom dia!”. Daqueles que não é dito de forma mecânica, automática, como quem tem em mente a tarefa futura a ser realizada, e sim daqueles que escapa por entre os dentes; aquele que a gente sente emergir das profundezas das entranhas, aquecendo ao passar pelo coração e rasgando o horizonte num sorriso largo.
“Vivo intensamente!”, dizem muitos.
O que é “intensamente”?
É acordar saltando de asa-delta e já aterrissar no lombo de um cavalo em disparada?
É isso intensidade? Velocidade? O fazer incessante? O riscar itens de uma lista a ser cumprida?
Por que não extrair zelosamente a grandeza ímpar dos diminutos detalhes que nos cercam? Saber o momento de parar em contemplação do agora?
Ter vagareza búdica.... vagabúdica.
Rir!
Isso mesmo! Rir das palavras, das novas palavras, das velhas, do novo uso das velhas.
Apreciar cada fonema, cada som que faz vibrar o tímpano, palpitar o coração.
Porém, talvez seja difícil, nestes tempos gris, sentir a energia correr nas veias.
Talvez estejamos com a vista turva, coberta pelas cinzentas nuvens das convenções e convicções, pautando-nos no dever de viver, de conviver, de sobreviver.
Catatônicos na praticidade diária.
Contudo, cabe a nós nos libertarmos das amarras sociais, das pesadas correntes da obrigação, das grades dos julgamentos e abrir fúlgidas asas forjadas na autenticidade, alçando voo rumo ao infinito das possibilidades.
Gritar: “Carpe diem!”;
“Carpe noctem!”;
“Carpe vita!”

Pedro Aduan- professor de Japonês-  aluno da UNISO- Universidade de Sorocaba- Letras- e meu garoto :o)

sábado, 24 de setembro de 2011

da série- Tenho um amigo que disse que eu:


Ando é muito ranzinza, mas que ele entende, imagine. E sabe que é justíssimo esse meu momento, que são muitos compromissos, blá... blá...blá...E por aí foi com um discurso todo cheio de dedos. Eu que não sou boba aproveitei para rir um pouco. E pude mais uma vez constatar, o que ele nem de longe compreende, a leveza que sinto com meus deliciosos compromissos. Ri muito. Foi quando ele à queima roupa disse:- péssimo o seu comportamento no oftalmologista. Nossa! Não se pode mais comentar nada que a notícia se espalha e, claro cada um aumenta um detalhezinho só pra colocar seu estilo pessoal de narrar. Pronto, é o que basta.

Já outro amigo, à boca pequena, me disse: — achei uma bobagem o ocorrido. Não precisava todo aquele pampeiro era só um exame corriqueiro, aliás, e usado desde o tempo da minha avó, Fiquei, com meus botões, a matutar que pampeiro será esse que chegou aos seus ouvidos. Mas amigo é amigo, e se a gente não puder falar o que está pensando melhor nem falar nada. E ele é meu amigo, sei disso. E foi ,então, que rasguei o verbo :— Meu querido, veja você que depois de todos aqueles exames de alta tecnologia ,o sujeito ou melhor o doutor pede gentilmente que eu me acomode em uma bela poltrona , apaga as luzes e de repente só o clarão na outra parede com algumas letras do nosso alfabeto e a famosa técnica: —

A senhora enxerga melhor: — assim, clic ou assim, clic assim ou assim clic assim... E como eu tenho o hábito de comparar para poder escolher o que sinto com a melhor opção, a cada mudança da futura lente respondia: — essa está melhor do que anterior, ah! essa é mais nítida , essa... O que o médico não gostou, pude perceber. Até que levada pelo que meu amigo nomeou acima, ranzinza, e eu categoricamente entendo como o ato de refletir, disse em bom tom ao médico: — impossível não fazer comparações quando temos que escolher é um processo natural da nossa mente, infelizmente nem todos fazem uso desse recurso, pois para muitos pensar é cansativo e por ai fui ... clic, luz acesa. Bom dia, doutor.

Dessa vez nem tive tempo de ouvir meu outro amigo que, com seu passinho miúdo, chegava. Mas ele também nem disse nada, sabedor que é da importância da refexão, sabia que não havia nada a dizer mesmo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Minicontos

Livro -Dois Palitos- Samir Mesquita


O vento ,inconstante e infiel, dançou primeiro com o trigal,mas logo logo, o trocou pelas cortinas da sala.

O outono chegou entre brisas e desejos. A árvore se despiu apressada .Fizeram amor em plena rua.

Se eu fôsse você ,ficava me beijando o tempo todo.
Já eu, se fôsse você, iria muito além.

Não quer casar, não quer juntar. Que é que você quer, então?Distância.



Fred Nabhan- escritor/ poeta, e ex- integrante do grupo "O Tablado", é meu aluno na Oficina "Os minicontos" ,em Tatui. 

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

"Tempos Modernos"




-Isto é um assalto.

-No débito ou no crédito?





Fred Nabhan-  escritor/ poeta, e ex- integrante do  grupo "O Tablado", é meu aluno na Oficina em Tatui. O minitexto é fruto de um exercício proposto em aula

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

Calcinha de Oncinha

          Dias antes da festa das bodas de prata, a mulher flagra o marido comprando calcinhas de oncinha.

-Faz vinte e cinco anos que você me conhece e nunca usei isso.
-Para quem é, para a sua amante?
Ele pálido e gaguejando, responde:
-É pra mim. Eu sempre adorei usar calcinhas ,me perdoe.
A festa das bodas foi um sucesso. Ele nunca mais deixou de usar calcinhas, pelo menos em casa.  Tampouco, deixou a amante.

                                                
Ary Roberto de S.Pinto- ex- diretor cultural em Tatuí , e atualmente meu aluno na Oficina "Os minicontos"

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

da série- Tenho um amigo que disse que eu:


Posso parar no meio do caminho, aliás, que todos podem. Como assim parar no meio do caminho? E só por brincadeira completei: — para colher flores e levar para a vovozinha. Mas parece que meu amigo não gostou da piadinha e calou-se. Por certo queria alongar-se na questão

Já outro amigo, solidário por natureza, resolveu tomar as dores do colega incomum e disse concordar. E ainda acrescentou, para o espanto do nosso amigo, com um ar todo sério: — Podemos sim parar, apreciar a natureza e quem sabe até descobrir um lugarzinho gostoso para se morar, fazer novos amigos. Não teve jeito, depois dessa o clima ficou tão carregado que os dois nem se despediram. Saíram a miúdo.

Já outro amigo, amante de caminhos e caminhadas, disse que podemos tanto seguir em frente, mesmo sabendo que o caminho será árduo, se essa é a nossa meta ou dar meia volta, mas não pelo fato da sua aridez e sim porque nos parece o melhor a ser feito. Afinal, quem disse que não podemos escolher outro caminho, desistir de tudo já conquistado para conquistar outros sonhos, talvez menores, mas nem por isso menos importante e com os quais sentimos a verdadeira alegria do viver.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Em todos os poros

  Eugène Delacroix

O momento, esse em que vivo é feito de outros momentos. Está na minha pele e em todos os poros, no fio do meu cabelo, no jeito do meu olhar, no barulho do meu movimento e no silêncio do meu repouso. O sorriso é feito de outros sorrisos, o choro de outros choros, o silêncio de outros silêncios. Tudo em mim já foi um dia do outro.

Somente a palavra é minha, ainda que venha de tantos outros, de tantos caminhos. Escolhi seu nascimento. E foi da boca dos rios, do grito dos bichos, do cheiro do mato, do sol, do vento, da chuva , da tempestade. Por isso, minha palavra pode ser movimento, força, cheiro. Pode ser quente ou fria. Não importa. O que importa é o momento, esse em que vivo e no qual uso de todas as palavras que escolho. Pois como disse o poeta: 

O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade

mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa..."
F.Gullar


E, variadas são as palavras, mas o que seria do homem se não houvesse a liberdade para usá-las.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

MINICONTOS


VOLTA
Não era miado. Agora ela tinha certeza. Era um choro abafado, que insistia em preencher o vazio daquelas horas mortas. Uma criança recém-nascida, talvez? Desceu a escada curiosa. Abriu a porta da sala e viu Helena lá fora com um bebê no colo. A mesma Helena que saíra de casa furiosa, prometendo nunca mais voltar. Olhou para dentro dos olhos dela. Olhou para a criança e sorriu. Balançou a cabeça de cima para baixo, num sinal de consentimento. Pode entrar, minha filha. Você chegou no dia certo.
 É Natal.


FINADOS
O anjo piscou pra mim. Pisquei de volta.
- E aí, tudo bem?
- Tudo bem, disse ele, batendo as asas e desfazendo a pose de estátua. Chegou bem perto de mim e cochichou no meu ouvido.
-Quer saber de uma coisa? Tô de saco cheio de ficar aqui plantado, com essa cara de santo, rezando pelas almas dos mortos. Bom mesmo era o meu emprego de cupido. Tocava fogo no coração da moçada. Seu avô e sua avó, que agora descansam em paz, se apaixonaram por minha causa. Foi tudo armação minha.
Disse isso e piscou mais uma vez, voltando a ficar imóvel.
Pensei com meus botões. É isso aí, seu anjo. Se não fosse você, eu não existiria. Nem estaria aqui, lavando túmulo, nessa tarde morna de finados.

ANOSMIA
Eles estavam ali, no Centro da Memória. O instrutor tinha convocado a reunião para falar sobre um tema comum a todos: o cheiro. Dei meu testemunho:
- Para mim, o cheiro de alho é carregado de emoção. Lembra minha mãe, sua comida, minha infância. Tempos que não voltam mais.
Outros depoimentos se seguiram. Alguns destacavam os cheiros de flores, de perfumes de pessoas amadas ou odiadas. Outros partiam para a escatologia: falavam de cheiros corporais, de suor, urina e fezes. Muitas histórias de paixões, tristezas e alegrias.
Ouvindo com muita atenção, ele se encolheu no canto da sala. Como se tivesse cometido um pecado gravíssimo, confessou:
- Invejo vocês. Não sinto e nunca sentirei cheiro nenhum. Tenho anosmia, falta de olfato. O mundo, para mim, é um quadro de natureza morta.


JASMIM
You make me feel so young
You make me feel like spring has sprung…
A música de Sinatra invadiu o quarto e ele se viu ainda moço, correndo no campo com sua amada, colhendo flores pelo caminho e brincando de esconde-esconde.
De repente um alvoroço ao seu redor, luzes em seu rosto, o médico com ar preocupado. Um cheiro forte de jasmim. Ela estava ali para voar com ele para muito, muito longe.


FREE AGAIN
Estava quase sem fôlego. Queria se misturar àquela massa humana, ficar invisível na multidão, fugir daquele pesadelo. Entrou no vagão e olhou ao redor. Ele finalmente tinha desaparecido e ela podia agora respirar aliviada. A próxima estação estava chegando: Liberdade.

DECLARAÇÃO
Ele estava sentado na mesma mesinha do café em que se conheceram. Com aquele romantismo de galã barato, beijou sua mão e ajeitou a cadeira, disfarçando o nervosismo.
- Sabe aquele exame de sangue que eu te falei? Pois é, deu HIV positivo.


Elizabete Leite: Professora de Português/ Inglês - moradora de Tatui. Atualmente minha aluna na Oficina de Literatura Gênero Minimalista: "Os Minicontos" , no Museu Paulo Setúbal.


 

terça-feira, 9 de agosto de 2011

da série- Tenho um amigo que disse que eu:



...quem acredita que todos enxergam ou buscam enxergar além dos fatos. E a queima roupa dise: — O que importa se você vê diferente? Uai! Importa, pois sou eu quem vê, respondi. E só para provocá-lo argumentei: — quem disse para você que eu penso que enxergo diferente, aliás, pode ser uma visão semelhante à de muita gente. Gente que não vê a árvore, mas o pássaro. Não o beco, mas a morte; a partida e não o trem. Surpreso, ele arregalou aqueles belos olhos verdes como o mar, sorriu e disse: — você enxerga demais.

Já outro amigo disse: nãnãninãnã. Não é nada disso. Você quer que o outro também veja como você vê e não como eles vêem, ou pensam que vêem... ou será que é você que não vê? Hum! Esse é aquele amigo todo explicadinho, que a gente acaba concordando só para evitar tempo e perdas. Não, caro leitor, não pense que é perda da amizade. Amigo que é amigo não se deixa abater à toa. Ele, sabedor disso, não perde tempo e vai embora todo satisfeito.

Já outro amigo, bom de prosa, adentrou a conversa sem nada comentar, pois sabia que o momento era da poesia. De olhos fechados, olhador profundo das coisas e da vida que é, enxergou no fundo de si o poema há tanto tempo guardado, o poema de seu poeta predileto. Sua voz ecoou na sala e nos fez enxergar, por um momento, a vida com os olhos do amigo e do poeta.

Olhar
Ferreira Gullar

O que eu vejo
Me atravessa
Como o ar a ave
O que eu vejo passa
Através de mim
Quase fica
Atrás de mim
O que eu vejo
- a montanha, por exemplo,
Banhada de sol -
Me ocupa
E sou então apenas
Essa rude pedra iluminada ou quase
Se não fora
Saber que a vejo.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu...


Deveria descansar mais que não é bom dormir pouco que o sono repõe as energias gastas e, óbvio, acabou partindo para o discurso em nome de uma vida saudável. Só faltou sugerir que eu mudasse totalmente a alimentação. Não, não faltou. Sugeriu: — saladas de rúcula, acelga, alface... Foi me dando um sono.

Já um outro amigo disse que não é nada disso e, que cada um é cada um. Nossa que percepção. Não consegui esconder meu risinho que, como já sabem, começa no cantinho esquerdo da boca vai lentamente se abrindo, mal parece sorriso, na verdade é um leve mover de lábios. Se bem que não tive a intenção de esconder não. Amigo que é amigo não se melindra da gente demonstrar o que sente.

Já um outro amigo adepto do “Carpe Diem”, todo sorridente, foi logo dizendo que é isso mesmo : — devemos aproveitar ao máximo todos os momentos sem nos preocuparmos com o amanhã, pois não sabemos o que nos reserva o destino. O que importa é o presente e que dessa vida nada se leva mesmo e que... E que... Bem, amigo a gente gosta e pronto, independentemente se o sujeito é esquisitão, gosta de frases feita, clichês..

Já um outro amigo, poeta de mão cheia, entrou na conversa e não teceu nenhum comentário não. Só nos olhou profundamente e, com sua voz doce, relembrou o grande escritor e suas sábias palavras: — “amigo é só isto a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e todos sacrifícios . Ou – amigo – é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é .”

Com os olhos marejados de lágrimas e o sorriso escancarado esbanjamos saúde e com um bom vinho alongamos o prazer do viver.

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Nenhuma palavra

Paul klee

Eu não sei bem o que ele pensou, se é que pensou, mas uma atitude daquela por certo que não. Será que é possível alguém não pensar em nada? O não pensamento, o esvaziar a mente de que falam os iniciados. Em minhas andanças aprendi que é justamente o contrário, dizem os budistas que a mente deve estar sempre cheia de pensamentos, mas alertam : — bons pensamentos que tornam a mente vazia.

Observação e leveza, completam. Procuro colocar esses e alguns outros ensinamentos em prática e, às vezes, me pego no finalzinho da tarde a olhar pela janela e observar o vai e vem das pessoas apressadas em seu viver.

Quando chove, então, o corre-corre aumenta, a avenida fica uma balbúrdia, táxis que param em lugares inadequados, pessoas bravas com alguns motoristas de ônibus que não param nos pontos, buzinas... É a cidade. É o fim do dia. É também a hora da Ave-Maria. E no meio disso tudo escuto longe o sino da igreja chamando os fiéis.

E mais uma vez penso no não pensar, no desligar-se proposto por algumas seitas ou no religar atribuído ao significado da palavra religião. Eu não sei bem o que ele pensou, se é que pensou, mas uma atitude daquela por certo que não. Nenhuma palavra, nenhuma carta. Nada. Somente o vazio. Vazio da mente, do corpo. Transcendência, morte.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Era para mim.


Não sei se começo pelo que vai dentro ou fora; pelo paletó ou pela camisa. Na realidade não se trata de paletó, e muito menos camisa. Explico: — é só mesmo um velho hábito de denominar, tratar coisas diferentes como se elas fossem iguais. Paletó, blazer, casco, jaqueta. E, bastou cair à temperatura que lá estou eu procurando um blazer para vestir. Mas não uso com camisa, não. Uso mesmo é com uma camiseta, pois além de ser prático penso eu, fica mais feminino. E gosto muito.

Mas apesar da minha dúvida no começo dessa narrativa, a bem da verdade, o que importa aqui é o que vai dentro, ou melhor, o que ficou guardado dentro, no fundo de mim. Foi tudo muito rápido. Hoje, no finalzinho da tarde quando virava à esquina Moreira Cesar avistei um grupo de jovens senhoras sorridentes. Na hora não me dei conta que o sorriso era para mim. Demorei uns segundos até reconhecê-las. E, quase no meio da rua, eufóricas nos abraçamos.

As jovens senhoras foram professoras, na Escola Estadual Francisco Eufrásio Monteiro, e na época eu era a Coordenadora Pedagógica na mesma escola. Trabalhamos juntas durante três anos e nas nossas reuniões semanais, os famosos HTPCs, eu sempre procurava ler um poema, um texto literário ou comentar algum filme interessante antes de começarmos as discussões dos temas propriamente pedagógicos.

E, hoje a tarde no friozinho da Moreira Cesar, esquina da Cesário Mota, elas recordaram desse fato. Meus olhos se encheram de lágrimas, meu coração ficou apertado, e ao mesmo tempo senti uma grande alegria com essa bela lembrança guardada lá no fundo de mim.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu...



Tenho que ser mais flexível, pois nem sempre as pessoas entendem um tipo como eu. Nossa! Como assim um tipo como eu? Percebi que ele ficou embasbacado com a minha pergunta. Não esperava, por certo. E respondeu à queima-roupa. É isso. Você faz cada pergunta.

Já outro amigo disse que não é nada disso. O problema não está na pergunta, ou melhor, nas perguntas, pois devemos sempre questionar. Se iremos encontrar respostas são outros quinhentos. Como assim outros quinhentos, perguntei sem pestanejar. Viu como estou certo, argumentou meu amigo que mal esperou o outro completar a frase. E lá ficaram os dois a confabular sobre minha esquisitice.

Foi quando entrou meu amigo das horas certas o qual, tanto eu quanto você, caro leitor, aguardamos na expectativa de que, com sua sabedoria peculiar, coloque um fim nessas saudáveis discussões entre amigos. E ele foi logo dizendo: — não há nada de estranho em ser como se é. E eu não podia deixar por menos. Como assim dá para ser como não se é?  Ele, com os olhos lagrimejando de tanto rir, respondeu: — sim, é a chamada pseudo-esquisitice. Agora sou eu quem está com os olhos lagrimejando de tanto rir, pois sou verdadeiramente esquisita.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

Eu sei...


 A vida sempre está por um fio. Eu sei e você, caro leitor, também o sabe. Essa frase, lugar comum, clichê como tantos que esquecemos no corre-corre da vida moderna e só muito remotamente ousamos olhá-la de frente. Talvez por sabermos de nossa impotência, nossa precariedade frente aos mistérios do viver. Mas há dias que esse mistério, sem pedir sequer licença, sorrateiramente se instala em nosso coração.

Foi de manhãzinha, como de costume caminho até a rodoviária, o trajeto não é longo e a beleza predomina — jardins bem cuidados, flores das mais variadas, ipês amarelos, roxos. Sigo totalmente indiferente aos passantes, ao movimento da avenida, e quando dou por mim estou dentro do ônibus comodamente sentada pronta para apreciar outras belezas da estrada. E meu olhar se detém em pequenos riachos, nas plantações, nos sítios, o gado no pasto. Um homem com sua enxada, roupas nos varais, verde muito verde a perder de vista.

E, lá no fundo girassóis pequenos, grandes, balançando ao vento, imponentes, majestosos. Meus olhos, como num passe de mágica, se enchem desses pequenos sóis, meu pensamento viaja na velocidade da luz. Já não estou não sou. Tudo agora são imagens. Imagens de quando eu não mais existir. Pensamentos de que eu posso não voltar. Um acidente e a morte como fato consumado. A casa que ficou para trás, o cachecol que não terminei, o poema inacabado, o almoço aos domingos, as risadas dos filhos, os gatos, os amigos, o bar, o ir e vir, a alegria de ser. Agora não é nada.
E tudo era tão real.


 

domingo, 5 de junho de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu


Deveria é ser mais grata na vida e estar muito das contentes, qualquer mulher no meu lugar estaria. Bem, pensei com meus botões: — primeiro eu não sou qualquer mulher e segundo, que estória é essa de ser grata. Grata eu fico quando alguém me faz uma gentileza, mas isso pelo amor de Deus.

Já um outro amigo, que acabava de chegar, foi logo perguntando :— o que é esse “mais isso” ou seria “menos isso” ou eu quem escutou mal? Diante disso, eu só podia rir mesmo. E aquele meu rizinho, que começa no canto da boca, vai abrindo lentamente e preenche todo meu rosto. Ele, percebendo que por trás dessa alegria toda havia uma grande bronca, ficou todo curioso. Mas eu não estava pra prosa, não. E me calei.

Foi quando meu bom e velho amigo entrou, e conhecedor desse rizinho foi logo perguntando: — qual a indignação dessa vez, hein? Ah! Eu não podia ficar calada, não. Amigo, como esse é raro. A gente sente aquela vontade danada de se abrir, falar o que vai lá no fundo do coração. E, assim como quem conta uma estória, fui logo falando: — Ontem alguém que não conheço. Nunca vi. Não sabe de mim, nem eu dele, escreveu e pelo tipo era Arial 12. Que sou bonita e que me admira.

Não pude deixar de refletir, como diz o sambista, com uma baita duma reiva, — Me admira porque sou bonita? Falei isso olhando nos olhos do meu amigo, que nesse momento me olhava profundamente. Senti que para ele eu era belíssima, mas que jamais tinha me admirado por isso, ou melhor, só por isso.

quinta-feira, 2 de junho de 2011

"Eu Que Aprenda a Levitar''

 
"O sofrimento existe até na música. Basta reparar. Os instrumentos mais primitivos trazem a sua marca visível: as flautas são feitas de ossos, as cordas de intestinos, tambores são feitos de pele, as trompas e as cornetas de chifres. Todos os instrumentos são, na sua origem, testemunhos sangrentos da vida e da morte.”
 José Miguel Wisnik.

Além de compositor e ensaísta, é professor de literatura brasileira na USP, conversou com o público (Sorocaba) sobre o impacto das crises individuais. Para ele, cair é efeito da gravidade, daquilo que é pesado. Mas e se, em resposta a um corpo que cai, tentarmos voar, levitar? Talvez isso seja possível ao aproximar-se das possibilidades indicadas pela arte, que tantas vezes contrapõe certa leveza profunda a tudo aquilo que é pesado e superficial, acredita o compositor. Ele, que entende o mundo como barulho e silêncio, afirma: Se meu mundo cair, então caia devagar. Não que eu queira assistir, sem saber evitar. Cai por cima de mim: quem vai se machucar, ou surfar sobre a dor até o fim? Cola em mim até ouvir coração no coração. O umbigo tem frio e arrepio de sentir o que fica pra trás até perder o chão. Ter o mundo na mão sem ter mais onde se segurar. Se meu mundo cair, eu que aprenda a levitar.

Wisnik é professor de literatura brasileira na USP, compositor, ensaísta, autor dos livros Sem Receita - Ensaios e Canções (PubliFolha), Veneno Remédio - o Futebol e o Brasil (Companhia das Letras), e do CD Pérolas aos Poucos, além de trilhas para cinema, dança e teatro.


Veja mais:
http://www.cpflcultura.com.br/site/2009/12/01/integra-eu-que-aprenda-a-levitar-jose-miguel-wisnik/

sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Passos firmes, decididos"


Ela anda em direção à praia. Seus passos são firmes e decididos. Não é bonita, nem feia. Um rosto daqueles que a gente vê e nem percebe.O corpo é magro em contraste com os seios fartos. As pernas são compirdas, os cabelos soltos. Ela anda em direção á praia...  Os olhos, grandes e vazios,olham só para frente e guiam automaticamente os sesu passos.

Por que eu, Meu Deus?
Porque logo comigo?

As mãos crispadas apertam o papel, na testa, gota de suor dão um brilho saltado ao reflexo do sol. Ela chega a praia, atravessa a areia e atinge o mar. Olha em volta, ninguém. Joga o papel na água, leva as mãos à cabeça tentando prender o cabelo num gesto mecânico e sem própostio. Olha mais uma vez em volta e, sem qualquer hesitação mergulha em direção ao ignorado.


Fred Nabhan- poeta, e ex- integrante do  grupo "O Tablado", é meu aluno na Oficina em Tatui. O texto é fruto de um exercício proposto em aula,  releitura de "As bailarinas do Teatro São João" de Paulo Setúbal.   Parabéns, Fred. ADOREI!!!!  “O TABLADO” contribuiu para a formação de toda uma geração de atores, diretores, figurinistas, cenógrafos, iluminadores e músicos do teatro carioca.
ver rmais:

quinta-feira, 19 de maio de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu


Tenho um parafuso a menos. Na hora fiquei tão feliz, mas tão feliz que abri aquele sorrisão. Ele até se assustou. Expliquei: — sempre tive comigo que eram muitos. Ele riu e disse que não, imagine. Isso é tudo da tua cabeça. Na hora fiquei séria, mas tão seria que franzi a testa. Ele até se assustou. Mas nem perdi tempo explicando. É claro que é da minha cabeça. Vai ser de quem? Se sou eu quem está dizendo. Amigo é amigo e a gente releva, mas cada um viu.

Já um outro amigo disse que não é nada disso. É que provavelmente eu pertença ao grupo dos DDA. Olhei-o dos pés à cabeça. Mas nem ousei sorrir, muito menos ficar séria. Fiquei entre indiferente e curiosa. Uma oscilação de sentimentos tomou conta de mim. Ele percebeu e com todo cuidado que lhe é peculiar começou a tecer algumas explicações. É médico e dos bons. Entregou-me uma folha com várias perguntas. Dias depois respondi e fiquei toda satisfeita. Iidentifiquei-me apenas com cinco das oitena e cinco. Iupiiiii gritei pra ele no telefone que gentilmente perguntou: — as cinco últimas, é? Não entendi bem esse “é”? Só depois de me orientar para algumas práticas relaxantes é que completou: — irremediavelmente uma DDA e em plena ascensão. Mas como sei que ele é também um grande brincalhão, relevei.

Já um outro amigo desses que chegam sorrateiramente, olhando lá no fundo dos olhos da gente, e devagarzinho começam a conversar como quem conta um conto, uma história de antigamente. Como quem fala do rio e a gente sente toda a umidade em volta, como quem fala das árvores e logo a gente se vê saboreando uma goiaba, um pêssgo ou uma fruta qualquer. Ou de um pássaro e a gente ganha asas. Delicadamente me disse que não é nem uma coisa nem outra. Não é falta de parafuso, ou DDA, ou TOC, ou o nome que se queira dar. Mas simplesmente um viver que não conhece outra forma a não ser a do sentir o que verdadeiramente sente. E, ainda por todos os poros, imensamente.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

"Como num transe"

Pablo Picasso 

É preciso desligar-se do mundo dos objetos, do convívio com as pessoas, do corre-corre cotidiano. Momento de puro prazer em que o nosso corpo pede um ausentar-se de tudo e de todos. A mim, esse momento apoderou-se do meu corpo como num transe, e tornou-se uma necessidade constante. Feito pássaro livre, em seu vôo matinal, adentro lentamente no mundo da linguagem. Busco na harmonia, no jogo das palavras construir meus personagens, minhas histórias, meus poemas.

Alimento das minhas noites. Regozijo de meus dias. Prazer dos prazeres. E no silêncio reinante onde o único barulho existente é o ronronar de gatos, que se abre um vasto mundo de sonhos e fantasias, e meus dedos correm sobre o teclado.

Estou em Paris e numa fração de segundo já no Haiti, choro com o menino baleado na calçada e rio com o palhaço que a cidade contratou. Beijo loucamente um grande amor na praça iluminada com neón, e em outro capítulo à despedida iminente faz escuro o dia mais radiante. Sou previsível, sou dissimulada, sou Capitu, sou Pagu. Sou todas e nenhuma. Há em mim todas as dores do mundo. Mas também todos os risos. Uso palavras que outros usaram, narrativas de outros tempos. Fadas e reis, príncipes e princesas, heróis e vilões. Histórias antigas, modernas, contemporâneas povoam minha mente.

Verso e prosa. É  Camões, é Pessoa, é Machado, é Baudelaire. Tantos. Mestres da palavra. Fonte de minha inspiração.  A noite vai alta, o vinho é doce e no exercício o oficio de escrever.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Risos de vingança

A bailarina- Edgar Degas

Um acontecimento que lhe parecia surreal. Sua vontade era esgueirar-se pelas ruas rindo alto, alto demais que nem a reconhecessem por tamanha ousadia, ou desrespeito - como era mais provável que denominassem. A rainha Dona Mana, em vida, detestara Dona Carlota Joaquina. Dona Carlota por sua vez, detestara a rainha. Não se toleraram nunca. E agora, eis que ela olhava a velha louca no caixão, aquela a quem tanto xingou em seus pensamentos e para quem, pela primeira vez, gostaria de sorrir sinceramente, um sorriso de vitória, de alívio, de prazer! Mas infelizmente não podia. Não naquele momento.

Contendo sua falta de sofrimento, ela volta a si e fita a Senhora Viscondessa do Real Agrado e Dona Margarida Sofia de Castello Branco, ambas velando com fundos respeitos o corpo real. Com ar sombrio ela pensa que essas são umas bajuladoras sem porquê. Mal sabem os maus bocados, infortúnios e desconfortos que passara por conta da doida. Se soubessem, matraqueariam com ela sobre a alegria daquele dia.

Ela encara novamente o corpo como enamorada por tal momento, e vê tudo aquilo, aqueles lutos, aqueles cortesões fúnebres, aqueles coches recobertos de crepe. Fechava os olhos e se perdia no próprio entusiasmo. Ao se recompor voltava à pasmaceira do decorrer do velório como que abduzida, sem saber ao certo de onde e para onde voltara.

Acabado o funeral, foi se deitar como uma criança que conseguiu o que queria. Feliz como jamais imaginaria sentir-se com o fardo de ser casada com Dom João VI. E um som invade sua paz tirando-lhe a paciência:
-“Qui est-lá?”
- Sou eu!
-Dona Maria?
- E então o que pensas? Levanta-te bigoduda, já não te suporto sã, qual com essa cara de aparição!
E Maria, a louca, ria alto, alto demais para que Carlota Joaquina conseguisse se recompor da própria desventura quando abrupta e palpitante ela acorda levantando o dorso para encarar a realidade. Mais feliz do que quando foi dormir passou a gargalhar. Passado o frenesi, Carlota encara o nada com um meio sorriso e desabafa:
-Velha louca! Bigoduda são tuas partes!

Patrícia Milão- estágiária de Jornalismo - e minha aluna  na Oficina de Literatura em Tatui  "Do Romance de Paulo Setúbal aos minicontos- Exercício proposto uma releitura do conto "A bailarina do Teatro São João" de Paulo Sétubal-  "Belissimo trabalho, Patrícia. É uma alegria  postá-lo.

sábado, 7 de maio de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu


Deveria pensar mais a respeito do assunto, já que também sou mãe. E que é no parque de diversões que podemos saber quem realmente tem esse dom. O dom de ser mãe. Na hora não quis contrariá-lo, ele estava tão empolgado em sua fala que deixei passar. Não deveria. Acabou indo embora todo sorridente. Com aquele sorriso, fruto de quem pensa que sabe e não sabe. Não que eu saiba tudo,ao contrário, mas, pelo menos não fico rindo à toa.

Já um outro amigo falou que não é nada disso, que para nos conhecermos, ou conhecermos o outro é preciso silêncio e observação. Coisas impossíveis nos parques de hoje, com esses brinquedos velozes e barulhentos. Concordei, em parte, mesmo porque, acho tão pouco só silêncio e observação em se tratando de nos conhecermos. Imagine, então, conhecer o outro. É preciso mais disse um outro amigo, e nesse momento fechei meus olhos voltei à minha infância ao lado de minha mãe no parque de diversão. Senti o perfume que exalava de seus belos cabelos negros e a força do olhar que sempre teve sobre mim. Naquela época era sim possível saber quem e como eram as mães só pelo jeito como brincavam no silêncio reinante da balança, com seus movimentos de ir e vir, da barca puxada por cordas, do chapéu mexicano com suas voltas vertiginosas. Algumas empurram os filhos como que se através da balança eles realmente pudessem ir embora pra sempre ou a barca afundasse imaginariamente num mar de águas profundas. Eu felizmente sorria ao ver a alegria de minha mãe correndo comigo para aproveitarmos todos os brinquedos. Mesmo sem saber o que era dom, aquela mulher vivia sua maternidade com todas as forças, talvez porque vivesse todas as outras coisas da vida com a mesma intensidade. Não era só minha mãe no parque. Ali estava uma pessoa inteira. Uma mulher com vida própria, sabedora de seus desejos mais simples,consciente de que na vida é preciso escolher.

Já um outro amigo, amigo de cabeceira, conhecedor dos mistérios que nos envolve, diz:─  “Para ser grande, sê inteiro: nada Teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes”.

Mãe, pai, filho, avô, tio... O que importa? Só precisamos mesmo, como canta o poeta, sermos inteiros.

quarta-feira, 4 de maio de 2011

Dentro do peito - A língua portuguesa-


Uma palavra veemente, e ao mesmo tempo suave, que muitas vezes ouvi quando menina: — leitura. Ler tornou-se, assim, algo constante em minha vida. A princípio somente uma maneira deliciosa de afastar-me de tudo e de todos. Mas como o tempo tornou-se uma necessidade vital. Ler, então, era o meu maior prazer.

Passava horas e horas na biblioteca, ou mesmo no fundo do quintal embaixo da velha mangueira com o livro que, às vezes, chegava a cair das minhas mãos tamanho o cansaço. Acordava assustada com minha mãe que sorrindo fechava o livro. E eu seguia cambaleando para dentro de casa a sonhar como o final da história.

Ouvi também muitas e muitas vezes comentários, preocupações carinhosas de alguns vizinhos sobre essa difícil escolha:- ficar só. Difícil para eles que não tinham descoberto, ainda, a riqueza contida nas páginas de um livro. E, hoje na distância do tempo constato que silêncio e solidão foram determinantes na minha vida. Uma área mágica que trago guardado dentro do peito.

E nessa quietude vivo uma grande emoção, uma festa, um quase ritual orgíaco sentido em cada verso do poema, em cada conto, romance, crônica de escritores fabulosos dessa belíssima língua que tanto me encanta: — a língua portuguesa.
 
 
 

domingo, 1 de maio de 2011

Dança - A vida que pulsa

É noite. A dança acontece. O pensamento se vai. No ar, os tambores, a voz, a paixão, a música a sedução. O burburinho das conversas aos poucos se dilui. O salão, como num passe de mágica, ganha dimensões espetaculares.

E, meu corpo desliza leve sobre a pista feito à bailarina de que fala Mallarmé: — Ela não dança, é uma metáfora onde o movimento se dá a ver.Semelhante à bailarina do poeta, então, também me deixo ver e sou toda movimento. Sou toda sentimento, toda alegria nos requebros e remeleijos do quadril, no balançar das mãos, no arrastar dos pés.

A noite vai alta o corpo cansa, mas quer continuar e num quase ritual gira, gira, gira em puro delírio. Delírio da dança, beleza de ser um corpo entre tantos outros corpos que, em pleno movimento sente a vida que pulsa e pulsando vive.

quinta-feira, 21 de abril de 2011

da série: Tenho um amigo que disse que eu

 
Faço parte desse grupo de pessoas de temperamentos desensofridos, e apesar de ter comentado comigo, em uma outra oportunidade, essa sua teoria me fiz de rogada só pelo prazer em ouvi-lo. Ele, então, não perdeu a oportunidade e entusiasticamente discursou: — Veja bem, cara amiga, há no mundo somente dois tipos de pessoas: — os de temperamentos desensofridos, os quais estão sempre prontos a zombar vão da pilhéria à bofetada com a rapidez de um salto, mas ao mesmo tempo conservam o bom humor; e os de temperamentos sofridos totalmente sem humor, carregam o mundo nas costas.

Já um outro amigo disse que a dor é a condição sine qua non para subirmos os degraus da evolução espiritual, mas que em mim a dor virou pura ventania. Concordei porque gosto mesmo de olhar minhas mazelas não como ventania que gela o corpo, mas feito palito de fósforo aceso. Fogo rápido. Queima somente quando seguramos tempo demais. E aproveitei da oportunidade já que meu amigo, o criador da teoria, me olhava como quem espera uma resposta. Aí não me fiz de rogada, não. E arrematei: — não se chega ao grupo dos desensofridos sem o muito sofrer.

Já um outro amigo com a serenidade dos que sabe que a dor queima feito fogo, mas que também gela feito ventania, trouxe na sua prosa a beleza da poesia e disse que, quer pertença ao grupo dos sofridos ou desensofridos, como eu amanheço e anoiteço no mundo das palavras nada disso importa. Dor, alegria, fogo, ventania tudo vira fantasia. Concordei porque, como ele, acredito no poder da palavra transformando nossas vidas. Ele conhecedor do que vai fundo em mim riu um risinho de quem sabe a dor que provocaria sua partida.

sábado, 16 de abril de 2011

O HOMEM QUE COMIA PALAVRAS

O Homem Que Comia Palavras
O Homem Que Comia
O Homem Que
O Homem

O

Godiva

Dionísio era o seu nome. Nome de deus grego amante de festas e orgias. Mas este Dionísio da história era diferente. Avesso a qualquer agrupamento humano, solitário, só tinha uma mania que o distinguia dos comuns mortais: comia palavras.
Foi assim desde criança, quando começou a falar. No início, comia sílabas, depois passou a devorar vocábulos inteiros.
“– Qual o seu nome, menino?”
E ele respondia:
“– Dio.”
“– Dio? Que lindo!”
Na escola, ele levava o dicionário na lancheira. Enquanto a criançada, no recreio, se empanturrava de sorvete e hot-dog, ele simplesmente abria os seus verbetes preferidos no livrinho e comia com os olhos: “Pão-de-ló. S. m. [............], Chocolate. S. m. [............], Orchata. S. f. [............]. Huuummm!!!”
Assim, fazendo dos olhos parte do seu sistema digestivo, devorava o que melhor lhe apetecia.
Os pais o levaram a psicólogos, que logo identificaram sua estranha doença como “verbofagia crônica irreversível”.
Sim, o seu mal não tinha cura, pois, para o tratamento era necessário isolá-lo de livros, jornais e de qualquer material ou objeto que apresentasse palavras impressas. Ou seja, uma missão impossível.
Dessa maneira, Dionísio foi crescendo à sua moda, escolhendo sua alimentação nos cardápios dos melhores restaurantes da cidade. Ele entrava, pedia ao maître o menu e se deliciava com um refinado “canard aux oranges”, um “einsbein”ou um prosaico “beef steak”. Dionísio era um autêntico verbofágico poliglota, um fenômeno de paranormalidade glutônica multinacional.
Essa sua curiosa peculiaridade e seu modo conciso de falar fizeram de Dionísio um verdadeiro deus: Dio.
Como já dizia a bíblia, no princípio era o verbo. E o verbo, a palavra, o signo escrito, era o combustível vital desse estranho ser.
Aos 33 anos, Dio já havia experimentado todas as iguarias de todos os povos da terra. Um gourmand completo, pós-graduado em gastronomia e nutricionismo virtual. Era consultado por especialistas, que o procuravam para conhecer a receita de pratos exóticos, da Conchinchina ao Afeganistão. Ele respondia por escrito, pois era a única forma através da qual conseguia se comunicar.
Nessa altura da vida, Dionísio começou a evitar leituras de qualquer espécie e iniciou um processo auto-destrutivo. Fez greve de palavras e, consequentemente, greve de fome.
Primeiro, perdeu peso. Depois, os cabelos. E, sem usar mais caneta e papel ou computador, isolou-se do mundo.
Bastaram alguns dias para que de sua boca saíssem apenas duas sílabas, pronunciadas num sopro: “Di-o”!
Nas vésperas de sua morte, balbuciava incessantemente: “Io, Io, Io”...
Até que, já agonizando, emitiu o mantra dos mantras, o som vazio, circular, redondo e perfeito: “O”.
Arregalou os olhos e descansou em paz.

Elizabete Leite: professora de Inglês, moradora de Tatui. Atualmente minha aluna na Oficina de Literatura (em Tatui). Adorável perguntou-me "se leva jeito para escrever contos/crônicas...", preciso responder :o)