quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

DESEJO - Carlos Drumond de Andrade

Desejo a você...
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter em Deus
Não ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender uma nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel...
E muito carinho meu.

domingo, 21 de dezembro de 2008

Libidinoso


desenho tua boca
no ar, vermelho contorno
doce desejo
e gosto de fruta.
amarelo manga
verde hortelã
molhado sabor
entre salivas e
pensamento
desperdício libidinoso

sábado, 20 de dezembro de 2008

Cumpli cidade


praças do mundo
praça de Roterdã
praça de Honolulu
praça de Sorocaba.
difere
o homem
difere
a vida.
cumpli-cidade
vela no barco,
inconstante ao vento,
quer o porto seguro.
busco voltar

é possível?
na intersecção dos planos
a bombordo de uma nau perdida
no lusco-fusco das indecisões.

é preciso
lavar o olhar
fotografar idéias, imagens repetidas
minha cidade

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Resposta para tudo....
Desconfio das palavras “pessimismo” e “otimismo” – diz Milan Kundera. – Um romance não afirma nada; ele busca e formula questões. Não sei se minha nação vai morrer e não sei qual dos meus personagens tem razão. Eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas. A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. É esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subseqüente do romance. O romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. Nessa atitude há sabedoria e tolerância. Num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. O mundo totalitário – seja ele baseado em Marx, no Islã ou em qualquer outra coisa – é um mundo de respostas e não de perguntas. Seja como for, creio que em todo o mundo as pessoas hoje em dia preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a toda a tagarelice insensata das certezas humanas.
-parte final da entrevista que Milan Kundera deu a Philip Roth em 1980 e que faz parte do livro - Entre nós-um escritor e seus colegas falam de trabalho-Companhia das Letras com tradução de Paulo Henriques Britto

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008


EDGGAR ALLAN POE


A Construção do Efeito

Ao iniciar o processo do escrever estórias, é o efeito que o autor deve levar em conta: qual o efeito que pretende causar no leitor? A primeira pergunta que se faz é: “Dentre os inúmeros efeitos ou impressões a que o coração, o intelecto ou (mais geralmente) a alma são suscetíveis, qual deles, neste momento, escolherei?”O que pretende o autor? Aterrorizar? Encantar? Enganar? Já havendo selecionado o efeito, que deve ser tanto original quanto vívido, passa a considerar a melhor forma de elaborar tal efeito, seja através do incidente ou do tom: “se por incidentes comuns e um tom peculiar, ou o contrário, ou por peculiaridade tanto de incidentes quanto de tom”. E em seguida busca combinações adequadas de acontecimentos ou de tom, visando a “construção do efeito”.Poe ilustra este percurso com a sua própria experiência na construção do poema “The Raven”, determinando as etapas de execução de um projeto: a extensão ideal de mais ou menos cem versos, o tom de tristeza, os recursos necessários para se atingir este tom: uso do refrão, tema da morte, espaço do quarto, símbolo do corvo, ambiente soturno, personagem sofrendo a ausência da amada morta, o desfecho com pergunta final: ainda veria a sua amada no outro mundo?

domingo, 14 de dezembro de 2008

É difícil escrever sobre escritores exponenciais.
Fica sempre a sensação de que faltou dizer quase tudo.
É o caso do poeta, ficcionista e bibliófilo argentino Jorge Luis Borges
(1899-1986), que é seguramente o maior nome das letras em seu país e um dos pontos altos da literatura mundial no século XX.



O fazedor
Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques

Um pintor nos prometeu um quadro.Agora, em New England, sei que morreu.
Senti, como outras vezes, a tristeza de compreender que somos como um sonho.
Pensei no homem e no quadro perdidos.

(Só os deuses podem prometer, porque são imortais.)
Pensei num lugar prefixado que a tela nãoocupará.
Pensei depois: se estivesse aí, seria com o tempo
uma coisa a mais, uma das vaidades ou hábitos da casa;
agora é ilimitada, incessante, capaz de qualquer forma e qualquer cor e a ninguém vinculada.
Existe de algum modo.
Viverá e crescerá como uma música e estará comigo até o fim.
Obrigado, Jorge Larco.
(Também os homens podem prometer, porque na promessa há algo imortal.)


_

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Para começo de conversa
( trechos do Ensaio- Carlito Azevedo)- Do Livro -Seletas: João Cabral de Melo Neto
Esqueça aquela imagem de poeta como um ser especial, uma personalidade fora do comum, cuja euforia ou sentimentalismo seriam expresssos em versos melodiosos, ritmos hipnóticos,vocabulário rebuscadíssimo e imagens oníricas.
O poeta, homem comum, falando a linguagem do homem comum e escrevendo sobre uma realidade comum a todos (e não sobre uma realidade ou irrealidade extraordinária que somente "o ser iluminado" teria acesso).
Esqueça também aquela idéia de que o poeta escreve sob o impacto de uma inspiração divina, idéia esta muitas vezes acompanhada pela imagem de uma "Musa", quase sempre alada, que sopra aos ouvidos do poeta os versos que ele vai anotando como se estivese em transe mediúnico.
O poeta prefere que o poema seja uma conquista árdua do trabalho rigoroso da atenção, do raciocínio., pois o poeta não é um ser alienado, e que em sua "infinita pureza" não pode ser maculada pela realidade social e histórica do mundo em que vive, que sua função é apenas celebrar as belezas da vida e a eternidade da arte.
O poeta fala da luta do homem pela sobrevivência, de touradas, de galinhas, asas de borboleta, de... poesia também, afinal ele sabe que para fazer a crítica da realidade é preciso, ao mesmo tempo, fazer a crítica do material com que se investiga a realidade, ou seja, a palavra.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Bacanal
Manuel Bandeira
Quero beber! Cantar asneiras
No esto brutal das bebedeiras
Que tudo emborca e faz em caco...
Evoé Baco!
Lá se me parte a alma levada
No torvelim da mascarada
A gargalhar em doudo assomo...
Evoé Momo!"
GOMACOMAGOMA
Sueli Aduan

Bala de goma
goma de masgar
goma colorida
doce da vida
goma de chupar
coma goma
coma

em coma
bala de atirar
bala de perfurar
amargo da vida
bala de matar
em coma
em coma
Sem metal
Sueli aduan
Noite.
Da rua o
som sem metal.
São Paulo, Nova York, Santiago.
Noite no mundo,
No coração do mundo,
no homem.
O Espelho
Sueli Aduan
Dormiu mal a noite toda. Levantou-se rápido, tinha pressa, queria ser o primeiro a chegar à empresa.
Olhou sua imagem no espelho automaticamente. Olhou por olhar, sem se ver, como quem olha para o nada. Tal qual um gato que passa entre os móveis, só por passar.
Como de costume, abriu o armarinho e pegou o creme de barbear, numa fração de segundos já estava com o rosto pronto, todo cheio, de espuma.
Maravilha gritou feliz, serei o primeiro a chegar e ninguém para atrapalhar meus planos.
Nesse exato momento ouviu a campainha. Estremeceu, quem seria a essa hora? Tomado de susto, sem reação alguma a única coisa que fez, numa mistura de loucura e medo, foi fechar a porta do banheiro.
Permaneceu assim alguns minutos, estático encostado na parede, com a navalha na mão.
De repente, começou a rir parecia um papai Noel, com toda aquela espuma espalhada pelo rosto. Ria, ria muito, mas sufocava o riso com uma das mãos na boca, preocupado que pessoa do outro lado da porta pudesse ouvi-lo.
Foi quando, pela primeira vez, em muitos anos olhou-se realmente no espelho, no fundo de seus olhos.
A princípio assustou- se com a aparência envelhecida, com os cabelos brancos, com o olhar opaco, tristonho.
Então assim, como numa cena de filme, o riso foi se fechando vagarosamente, dando lugar a uma estranha seriedade, ugar àuma contração dos músculos faciais foi se formando, a respiração tornou-se mais lenta, e mesmo com toda aquela espuma era possível ver algumas rugas.
Como elas surgiram, assim, tão de repente? Como ele não se deu conta da existência delas? Há quanto tempo não prestava atenção em seu corpo, em sua fisionomia? Em seu próprio rosto.
Perguntas vindas à sua mente, como uma tempestade em dias de calor. Lavou o rosto, lentamente, tirou toda a espuma, guardou a navalha no armarinho da parede, e ali ao som da campainha insistente permaneceu, sem a mínima curiosidade, de sabe quem àquela hora da manhã o procurava.
Talvez fosse engano, alguém com endereço errado. Ou não? Alguém pedindo ajuda, um assassinato? Um convite para festa? Nada, nada o movia.
Por uns instantes pensou no casal do 72, brigavam muito, lembrou-se da mulher no elevador, com um dos olhos roxo, escondendo-se atrás de enormes óculos escuros, cabelos caídos sobre a face; lembrou-se da velhinha do 76, vivia reclamando de fortes dores no peito, teria morrido? E porque o avisariam? Mal e mal trocavam algumas poucas palavras, sempre no elevador.
Deu-se conta que, ultimamente, evitava o elevador só para não encontrar com as pessoas, ter que cumprimentá-las, ser gentil, sorrir. Novamente o tremor por todo seu corpo. Estaria enlouquecendo?
Quando menino, sua mãe sempre reclamava, sem esconder a raiva, o quanto seu pai era esquisito falando sozinho pela casa. Adulto ainda guardava a imagem dela, de vestido vermelho, gritando:
_Cale essa boca, velho, miserável.
Seu plano em relação à empresa afastava-o do convívio com as pessoas, da descontração de uma conversa no finalzinho da tarde, do futebol aos sábados, rotina dos homens do edifício.
O que o tornava tão diferente de seus vizinhos? Suas escolhas, suas leituras, seu silêncio, sua infância solitária? E porque um simples toque de campainha imobilizou seu corpo, encheu sua mente de questões?
O que estaria por trás disso tudo? Seria o destino, o acaso, ajudando-o a conter sua vingança?
Não, não acreditava nisso. Levaria seu plano até o fim. Tinha colocado os últimos anos de sua existência em cima da idéia que achava genial. Não seria um simples tocar de campainha que o deteria.
E nunca fora dado a preocupar-se com nada disso. Todos envelhecem, todos têm suas manias, uns gostam de movimento, barulho, outros preferem silêncio e solidão.
Era sim, um sujeito normal, igual a tantos outros que todas as manhãs barbeiam-se, dirigem-se ao escritório, cumprimentam-se amigavelmente e seguem à vida.
Decidido resolveu fazer a barba. Como de costume, abriu o armarinho da parede e pegou o creme de barbear, numa fração de segundo já estava com o rosto pronto, todo cheio, de espuma.
De posse da navalha olhou-se no espelho, nesse exato momento, percebeu que nada mudaria sua decisão.
Olhou-se mais uma vez, profundamente, enxergou as rugas, os cabelos em desalinho, a empresa, a vingança, a infância, o vestido vermelho... Nada o movia.
O som da campainha em seus ouvidos, a voz da mãe e a porta do banheiro fechada.
Foi preciso arrombá-la, dias depois, sangue e espuma grudados no espelho.
Seria destino?



terça-feira, 2 de dezembro de 2008

.... “Descobri que minha obsessão por cada coisa em seu lugar, cada assunto em seu tempo, cada palavra em seu estilo, não era o prêmio merecido de uma mente em ordem, mas, pelo contrário, todo um sistema de simulação inventado por mim para ocultar a desordem de minha natureza. Descobri que não sou disciplinado por virtude, e sim como reação contra a minha negligência; que pareço generoso para encobrir minha mesquinhez, que me faço passar por prudente quando na verdade sou desconfiado e sempre penso o pior, que sou conciliador para não sucumbir às minhas cóleras reprimidas, que só sou pontual para que ninguém saiba como pouco me importa o tempo alheio. Descobri, enfim, que o amor não é um estado da alma e sim um signo do Zodíaco”.
(Memórias de Minhas Putas Tristes . pg.74- G.G.Márquez)

domingo, 23 de novembro de 2008

Cinzas - sú

Qual será para mim
o espetáculo do mundo?
passeio com cinzas na boca.
Vejo uma infelicidade de sentido
Tudo cai como uma folha
Sinceridade absoluta

sábado, 22 de novembro de 2008

Outros Viram
Jorge Mautner
Composição: Jorge Mautner/Gilberto Gil

O que Whalt Withman viu

Maiakowski viu
Outros viram também
Que a humanidade vem
Renascer no Brasil!

Teddy Roosevelt viu
Rabindranath Tagore.
Stefan Zweig viu também
Todos disseram amém
A essa luz que surgiu!

Roosevelt que celebrou nossa miscigenação
Até considerou como sendo a solução
Pro seu próprio país
Pra se amalgamar
Misturar-melting pot feliz
Não conseguiu, pois, seu Congresso não quis!

Rabindranath Tagore profetizou
Ousou dizer que aqui surgiria o ser do amor
Ser superior, da paixão, da emoção, da canção
Terra do samba sim e do eterno perdão!

Maiakowski ouviu
A sereia do mar
Lhe falar de um gentil
De um povo mais feliz
Que habita esse lugar!

Esta terra do sol
Esta serra do mar
Esta terra Brasil
Sob este céu de anil
Sob a luz do luar!

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Falando em poesia:

Jorge Luis Borges. “O Enigma da Poesia” in Esse Ofício do Verso (pp. 11-12)
(...) Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma "expressão". Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. Assim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia — a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.Ora, tendemos a fazer uma confusão corriqueira. Pensamos, por exemplo, que se estudarmos Homero, ou a Divina comédia, ou Frei Luis de León, ou Macbeth, estaremos estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poesia. Creio que Emerson escreveu em algum lugar que urna biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos. E aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta à vida quando se abrem as suas páginas.Falando sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza dos Estados Unidos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã — a maçã não pode ter gosto por si mesma — nem na boca de quem come. E preciso um contato entre elas. O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras — ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos — saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra.
Jorge Luis Borges, Esse Ofício do Verso. São Paulo: Cia das Letras, 2000

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Imagem


O olho que me olha
olha com medo.
olha, entreolha, reolha.

O olho que me olha
olha com desdém.
olha por olhar.

O olho que me olha
olha sem ver.
olha sem perceber.

Que sou eu quem olha.
Olhos que não veem
Espelho de minha imagem.

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

Perdidos & Achados - sueli aduan

Perdidos & Achados-
Desço rapidamente à rua. Sinto que meus pés mal tocam o chão. Levito? Isso são horas para ironias. O momento não é para piadas, ainda mais, de mau gosto. Coração acelerado aperto o passo. E se realmente perdi?
Como era que brincávamos, mesmo? São Longuinho, São Longuinho, se eu achar dou três pulinhos.
Saudade da Rita, tão linda e, e nada, diacho. Malditos pensamentos não paro de pensar. Será normal? Olha aí, cada passo um pensamento, um questionamento.
Vai ver, é assim com todo mundo. Mas comigo penso que é diferente, meu vôo vai longe. Mãe sempre dizia:
_Voando menino... Mulher boa, a mãe, sempre fingindo não ver Rita e eu, escondidinhos, lá no milharal trocando beijos.
Que nostalgia é essa? O que está acontecendo comigo? Preciso me concentrar, relembrar o trajeto feito. Como o trajeto feito? Sempre subo a 42. Será que mudei e nem percebi? E se andei a esmo?
O que é isso agora, delírio? Com andei a esmo? Basta. Não ouço mais essa maldita voz. Exijo de mim concentração, silenciar esses ruídos interiores.
Os orientais dizem que os amantes nada dizem por que no seu silêncio mora um mundo, uma imagem imobilizada num momento eterno.
Então, a Rita nunca me amou como falava, as juras de amor sussurradas aos meus ouvidos, os lábios a roçar-me o pescoço, os beijos ardentes, tudo tão forte, tão intenso.
Que bom que era ouvir sua voz, principalmente, quando me chamava:
_Titooo, Titooo, Vamos. Não gosto de chegar com as luzes apagadas. Íamos toda terça na sessão das quatro, único dia da semana que passava bons filmes.
Rita ficou encantada com “Passagem para a Índia”, não parava de falar, dias depois ainda comentava as cenas mais marcantes, as mais belas falas dos personagens. Seus olhos ficavam cheios d’ água, à voz embarcada.
Outro que a impressionou: “O Desaparecimento de Lorca”, com Andy Garcia no papel de Frederico Garcia Lorca. Este sim, mexeu com ela e, quando Andy Garcia/Lorca com terno branco, chapéu cinza, gravata vermelha, desceu magistralmente às escadas, chorou copiosamente.
Sabia os poemas. Ouvi baixinho, Rita, declamando Lorca. Que emoção.
Engraçado, só hoje, percebo que Rita pronunciava meu nome acentuando o “o” do Tito, como se estivesse cantando.
Será que ela queria ser cantora?
Quanta se perdeu da Rita, em mim, com o tempo? E o que eu nem cheguei a conhecer?
Rita pintava, nunca mostrou- me seus quadros. Também a gente nunca falou de cores, falávamos de tudo: das ondas do mar, do canto de um rouxinol, dos caminhos dos descaminhos. Cores nunca.
Só depois do acontecido é que soube, até guardei um quadro de lembrança. Vai ver pintava declamando Lorca.
Quer dizer então, que eu vou ficar aqui descendo e subindo a ladeira, relembrando perdas?
Lembrar-me da Rita, recordar seu jeito doce dói e, o fato não resolvido, martela na minha cabeça, a própria polícia não soube explicar.
Quanta coisa se perde nesta vida, ou não. Quantos encontros e desencontros. O que é que realmente fica em nós? Uma moringa de barro, um cesto de vime, uma garrafa de vinho, toalhas brancas dos finos restaurantes, um guardanapo, os aromas, os cheiros das ruas, das casas, a morte de Rita, o documento perdido.
O vento empurra a manhã silenciosa, profusão de coisas acontecidas, infinitas manhãs.

sábado, 15 de novembro de 2008

Em mim - sueli aduan

Em mim

aquietou-se em mim
todos os sons.
e o silêncio se fez infinito.
em que momento ocorreu?
não posso precisá-lo,
não saberia dizê-lo.
a calma, o silenciar-se, nada a dizer.
apenas e tão somente,
o silêncio, em meio
ao caos do dia, da noite, da vida,
do passar do automóvel,
do cão ao longe,
do bêbado.
da efervescência ao meu lado,
ao silêncio infinito.
eu ,em silêncio, silencio.
e a cidade agita-se
em que momento ocorreu?
esse retorno cósmico
impossível dizê-lo

Versos Alheios-sueli aduan

Versos Alheios

no papel, quem me dera palavras
chamo Pessoa ele não me escuta
quero versos.
quero também ser do tamanho da minha aldeia
quero falar dos sentimentos das pedras
são só pedras.
poetas, poetas
as palavras sufocam
as idéias morrem.
e o papel ficará em branco
branco como a morte.
Lispector, empresta-me borboletas
quero também voar,
voar no mundo das palavras
mas não sou poeta

sou um severino, um sertanejo
para mim tudo é
terra,
gente,
fome.

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Devoragem- sueli aduan

Devoragem

Assim vejo a mim:
perdida dentro de um homem,
sedenta de paixão e desejo.
Uma mulher,
nua e quente.

Com a boca molhada,
entreaberta para o beijo.
Corpo e movimento.
Pernas e pêlos

Assim vejo a mim:
perdida dentro de um homem,
mãos e seios,
pulsação e orgasmo.
Na voragem o amanhecer.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

MELANCOLIA -sueli aduan

Melancolia



Por quê?
a geometria não exclui a melancolia.
Quero o triunfo da linha reta,
garantia de um ponto fixo.
Continuarei meu caminho como?
Como um Édipo errante.
Quero algo certo,
ou a certeza de que no mundo,
nada é certo.
Paralizo-me.
E não é sono, preguiça,
É pensamento, perplexidade,
incoerência da vida.
Tudo é quantidade e volume.
A esfera me faz sofrer.

terça-feira, 11 de novembro de 2008

OBSTINADAMENTE- sueli aduan

Obstinadamente
Peço,
como um homem cansado e ferido
pede,
uma tônica, um estimulante
Obstinadamente
Eu
Peço

domingo, 9 de novembro de 2008

DOCES OLHARES- sueli aduan

Doces Olhares

E então eu disse:
Vá à merda. Disse sim.
Estão duvidando? Vá à merda, disse.
Não deveria ter dito? Não fica bem?Talvez vocêis tenham razão.
Uma mulher como eu. Uma mulher como eu? Como, uma mulher como eu? Que bobagem é essa?
O que é preciso, Não basta só ser?
Ser ou não ser? Eis a merda
Primeiro foi aquela entrega de pizza. Não sei como, nem quem, que maldita confusão foi aquela. Só sei que eu tinha 42 pizzas na minha sala. Justo na noite que Dr. Gaspar e senhora jantariam em casa.
Por mim, tudo bem, aqueles intragáveis. Só que o chefe não era meu.
Fiquei louca pensando na reação do meu querido maridinho, além daquele cheiro de molho e atum no apartamento todo.
Pra ajudar à vizinha do apartamento da frente grita:
Não convida pra festa, que cheirinho.
E meu filho então, com sua orientadora do mestrado colocando o rapaz, meu menino, numa situação desesperadora. Cada hora uma exigência, uma mudança, um novo caminho a seguir, e ele ali perdido.
Até me telefonou no trabalho.
Que fazer? Sou a mãe. Não sou a orientadora do mestrado.
E mãe, é mãe. Resignei-me:
Filho querido, o que? Fale mais alto, hum, sei, de novo.
Agrade aquela louca, filho, faça o que ela manda. Qual o problema?
O que? Eixo, que eixo? Ah, se ela falou que você deve escolher um eixo, vá filho descubra o que é essa merda de eixo. Hum, você já tinha feito isso. Vai ver ela não percebeu, ou mudou de idéia, essas coisas são assim mesmo, relaxe filho, releve..
Meu pai vem às vezes, tipo visita, senta toma um café, fala pouco, vai embora rapidinho. Sempre a mesma coisa.
Outro dia me surpreendeu, com seus conselhos. Ele nunca foi disso.
Dizia sempre: cada um deve saber de si.
Filha vê lá, ehm, não deixa sua filha uma menina, ainda, tão solta.
Você sabe que eu não gosto de me intrometer. Mas outro dia não deu, ela passou por mim tão grudada, uns beijos com aquele garoto que nem me disse bom dia, aliás, acho que nem me viu.
Ah, pai. Se o senhor soubesse que o garoto é garota, ainda bem que nem percebe. Não iria entender. Eu sim, claro, sou modernérrima.
Bom, não é? Essa moda de cabelos compridos, e ela têm um cabelo tão brilhante. Que shampoo será que usa?
E as noites então, querem saber? Ah. querem , se querem.
De uns tempos pra cá finjo. Isso mesmo finjo, eu que sempre fui contra, levantei bandeira de: é preciso criar um clima, um perfume suave, excitante, ser romântica e sensual, carinhosa e agressiva.
De que jeito? Depois de tudo diluído, acabado, o encanto passado.
É talvez, se eu ponderasse mais, sei lá, contasse até dez, como dizia meu velho e bom pai: não deixar o sangue ferver, respirar fundo, e só então agir.
É,sei. Mas não deu não. Fui me segurando, ponderando uma coisinha aqui, outra ali, e aconteceu em alto e bom tom:
O rapaz da pizza, com os olhos esbugalhados, a olhar-me, perplexo. Não acreditando. Eu, que sempre elogiava sua atenção, sua eficiência e, tão agradavelmente o tratava. Estava aos berros. Louca.
Assim foi com todos. Passei a mão no telefone e fiz o mesmo com a orientadora, acho que nunca mais ela vai falar em eixo.
A noite com meu maridinho foi um prazer e tanto.
Olhei-o fundo nos olhos. Vestida de vermelho, a voz sonora, suave, excitante, quase um sussurro, e aquilo saiu assim, vindo lá do fundo de mim:
Vá à merda.
Foi de repente? Como assim, de repente?
Não. Nada é assim de um dia pro outro, a gente é que acha isso depois que a coisa acontece.
Nãnã na ni nãnã
Vocêis sabem disso. Ou não sabem? Não?
E eu aqui, falando, falando, pelo jeito todos estão contra mim. Esses olhares acusadores. Vamos digam logo, vamos.
Digam que eu realmente poderia. Sim, claro. Eu poderia ter me controlado, afinal sou civilizada, pós-graduada, viajada.
Uma mulher e tanto. Chique.
Sabe esse sapatinho, só esse sapatinho, uma fortuna. Eu me lembro compramos na Grécia. Deixe-me ver. Ah, que loucura, aquele finalzinho de tarde, já tínhamos visitado tudo, andado muito, meus pés inchados, mas eu não queria parar. Não,não queria.
Tudo era muito belo, precisava aproveitar cada instante, reter na memória cada lugarzinho, me encher da ilha, dos olhares daquela gente, doces olhares.
Sentir o vai e vem dos barcos, o balanço, a calmaria.
Eu não precisava desses sapatos, como não precisei dos casacos, dos brincos, das roupas, dos jantares.
O que eu queria mesmo era poder contar para alguém. Só pra falar, sem medo.
Impossível ?
Como impossível ? Será que não existe nesse mundo ninguém que?
Se não me controlo acontece. E às vezes, não me controlo e, o pior ninguém percebe. Tudo é muito dentro.
Claro sou uma dona de casa exemplar, agradável com os amigos, elogiadíssima no trabalho, sempre alegre, sorrindo.
É que foi acontecendo devagar, como tudo, aliás. Eu mesma, no começo, não percebi. Sabe, como quando se bebe água sem muita sede, só porque sabemos que é preciso. Bebe-se devagar, saboreando cada gole lentamente.
É talvez, seja isso, devagar eu fui saboreando esse cansaço.
Cansaço de sair da cama todas as manhãs, cansaço de falar até as coisas mais banais.
Bom Dia, Lucinha, você já trouxe os pães? Que bom. Pegou pão doce? Gosto tanto.
Também poderia não dizer nada, calar-me. Porque essa necessidade de ser agradável. Posso apenas dizer um Bom Dia seco.
Lucinha, hoje teremos convidados para o jantar, faça algo diferente.
E se ela coloca um laxante em meu suco? Ou até algo mais forte, só de raiva. Acontece.
Pensamento torturante. Só eu para pensar isso. Será?
Em algum momento da vida de cada um deve ter ocorrido esse tipo de pensamento.
E se eu não for mais agradável com todos. Condescendente, compreensiva, tolerante, amiga, mãe, filha, nora, amante.
E se me mandam embora do trabalho, se me evitam, se meus filhos nunca gostaram de mim, se aquela vizinha tão boa, voz tão meiga, é a primeira a falar de mim, e se, e se.
A diferença é que comigo isso atingiu proporções absurdas, para cada gesto, cada situação cotidiana um questionamento sem fim.
Cansaço das coisas tidas normais.
Ora, ora. Sim. Ah, entendi.
E se eu demonstrasse. Não sorrisse mais ao cumprimentar os colegas no trabalho, não aceitasse os convites, faltasse ao encontro com os amigos, não visitasse aos domingos minha mãe, minha sogra, minha tia, se pouco ligasse se os filhos gostam ou não gostam de mim, se não quisesse mais falar com ninguém.
Isolasse-me?
Não. Não posso. Então vou levando e ninguém, ninguém vai percebendo, vou sorrindo, vou cada vez mais sólida, mais segura, escondendo no fundo de mim esse mistério, essa demência, me controlando.
Até o dia em que outro rapaz entre com pizzas, ou qualquer outro incidente assim aconteça.
Sei que não vou mais mandar tudo à merda.
Acho que no fundo vocêis estão com a razão.
Afinal somos todos civilizados.
Vou mandar mesmo é pra puta que pariu...

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

CLIC- sueli aduan

Clic

Paro o tempo
Clic
fotógrafo olho a cidade
quem?
quem enxerga através de meus olhos?
eu?eu matuto,
eu mameluco,
eu paranóico,
eu paraibano,
eu sorocabano,
eu cidadão do mundo,
todo mundo?
além da fronteira, da beira, da clareira
a vida,
o tempo,
a cidade.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

FAROL DE MILHA

Farol de Milha -Sueli Aduan

Desligou o motor. Tirou as chaves guardou-as no bolso. Encostou lentamente a cabeça no banco, escorregou um pouco o corpo, os pés quase tocaram o acelerador. Esse incidente alegrou seu coração. Ligar novamente o motor, um pisão forte e bum... ribanceira abaixo. Quando encontrassem o carro , se o encontrassem, pensariam que foi um acidente. Mas era isso que queria? Tinha dúvidas.
Estrada perigosa em noites frias como esta quase impossível dirigir. Bom ter encostado um pouco, pôr as idéias em ordem. Seguir o conselho da mãe, na despedida, insistiu muito:
- Adallberto, por favor . Por favor, hein! Faça outro caminho. Quem sabe a BR 116, ou então use os faróis, aqueles, os de milha.
- Mãe, eu já lhe expliquei. Farol de milha... - ela erguia um pouco o olhar, os olhares encontravam-se e ele se fechava, não falava mais.
Porque será que esse olhar exercia tanto poder sobre ele, quando criança ficava horas olhando para esses mesmos olhos, e na sua inocência de menino pensava que eram um pedacinho do mar.
-Os olhos da minha mãe são azuis da cor do mar. O mar é verde, retrucava Conceição. Ele bravo gritava, na rua, na escola pros amigos:
- Azul, azul, azul e azul. Ria muito.
A mãe, era uma mulher magra, pele morena, um olhar sonso e agudo. Dava-lhe surras quando o ouvia falando assim com os meninos.
Dizia que não se pode humilhar os outros. Como se fosse obrigação ter olhos claros.
Pobre moleque. Às vezes escondia-se no fundo do quintal embaixo da velha paineira. Lá, no silêncio da noite, fazia planos. Era sempre o herói alegre, sorridente, mesmo quando em suas mãos, presenciava a morte de algum dos bichos. O sangue escorrendo não o incomodava, sentia uma coisa esquisita que não sabia explicar. Mãe sim, ficava com os olhos cheios d’água. Momento mais inoportuno para recordações.
Olhou o relógio 4 horas. Logo a polícia localizaria o carro. Alguém já deveria ter encontrado o corpo. Pensamento besta. Uma noite fria dessas, impossível. Sossegou. Ligou o rádio na procura de alguma notícia, nada. Só música.
Balançou o corpo ao som do bolero, sorrindo cantarolou: “Dois pra lá, dois pra cá, a cuba libre dá coragem, a dama de lilás”... . Há quanto tempo não dançava, não se divertia. Vidinha pobre .
“Dois pra lá, dois pra, cá.”, parou de repente, um estalo bombardeou sua mente: “Como não pensei antes, Ceição, por que não procura- lá?” .Certamente ela ajudaria.
Era uma mulher generosa, sempre envolvida em favor das minorias, dos excluídos, como costumava dizer nos comícios acreditava na mudança, na bondade do ser humano e nessas baboseiras todas. Sempre achei isso tudo um porre .
Decidido ligou o carro, e arrancou a toda., praia de Copacabana, lembrava exatamente do prédio . Não poderia ter sido outro o local escolhido. Tudo tão à mão, o morro, saídas estratégicas, a avenida principal e acima de tudo o povo, uma gente dada à alegria, à descontração. Ideal para misturar-se, ficar uns tempos escondido até a poeira baixar.
Trêmulo, sem saber exatamente o que falar, tocou a campainha, depois de um longo abraço e um breve fitar de olhos foi Conceição quem falou. Um novo plano, dessa vez sem erros. Adalberto não pestanejou, nem poderia, instalou-se confortavelmente no velho sofá e a noite, após o jantar, dirigiu-se a uma saletinha existente no fim do corredor.
Ao lado uma janelinha com cortinas brancas, um vaso verde com flores, uma mesa de madeira tentavam dar ao ambiente um clima de lar.
Apartamento pequeno, simples. É, a gente se acostuma com a pobreza, a morar em apartamentos de fundos, ficar sem ver a rua, comer pouco. Eram os pensamentos de Adalberto quando Conceição, vindo da cozinha, sorrindo, entregou-lhe um amontoado de papéis. Meio sem jeito como se ela tivesse percebido seus devaneios, esticou as mãos e começou rapidamente a leitura.
Peça chave do esquema, ela deveria afastar-se uns dias do apartamento para reaparecer no momento exato. Maneco e Luís ficariam no carro atentos ao movimento da avenida. Detalhes, nomes de pessoas, horários, gráficos, tudo devidamente organizado.
Acabada a leitura, Adalberto fitou Conceição por algum tempo, em silêncio e fechando a cara disse : - não pensaram em mim, é ? Ele Beto , que nunca esconderá, desde garoto ,sua queda para herói, queria o papel de destaque, sentia-se pronto .
Com ar de superioridade abordaria o presidente logo que este desse os primeiros passos junto a comitiva. Se preciso usaria da força física, coisa que , sempre fez questão de demonstrar.
Procurar Conceição encheu-lhe de confiança . Não podia contar-lhe a encrenca em que se metera. Não agora, melhor mesmo era ficar quieto e, seguir em frente. O jeito era fingir sono, e dizer boa noite.
Foi o que fez. Dormiu profundamente e acordou com a amiga trazendo-lhe uma bandeja com bolachas e café forte. Afetuosamente ela alisou-lhe os cabelos. Apanhado de surpresa não atinou de imediato com o motivo de tanto carinho. Ela mesma se encarregou de mostrar a razão:
“O que está escondendo, Adalberto?. Não confia mais em mim, somos amigos, não? Desorientado, sem saber como proceder, o olhar cravado no corpo de Conceição, que de camisola, insinuava-se, começou a balbuciar algumas palavras e numa evolução rápida articulando idéias que finalmente explodiram numa confissão, declarou:
Afundei o punhal no ventre de Tereza, talvez a polícia já saiba.
Conceição tomada de espanto ouviu atentamente o relato que se seguiu, as palavras ditas eram frias, sem emoção .Havia naquele corpo sadio de homem uma mente perversa, doente, alimentada pelo prazer da morte, do sangue.
Perplexa pela crueza, pela descoberta, os olhos de Ceição expressavam a descrença quanto às possibilidades do velho companheiro participar do seqüestro do presidente.
Ao desviar o olhar do corpo da amiga, Adalberto sentiu-se como o menino frente ao olhar da mãe. Perdido ensaiou um sorriso sem muita convicção, última estratégia na tentativa de comove-lá . Ela não se deixou enganar. Não fora criada para sentir dó ou medo.
Tudo o que sabia era que na sua frente tinha um homem, não um qualquer, um amigo, que puxou uma faca, não uma faca qualquer, um punhal, e encostou no peito da mulher desceu até o ventre com numa dança macabra e cravou na companheira, na amada. Nada justificava esse ato. Violência nunca fez parte da sua vida .
Conceição acalentava um sonho, era quase uma imagem, a chuva molhava o verde do campo,o campo de seus pais, da sua infância, de seu país, os campos de sua vida, fartura e alegria juntas.
Esse sonho foi amadurecendo junto com os companheiros do partido. Ter uma conversa cara a cara com o presidente, sensibilizá-lo, persuadi-lo, usar do poder das palavras era sua meta.
Numa arrancada súbita, Conceição se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando o passo, virou-se e pediu a chave do apartamento.
Tirem as algemas.
Quer água?
Não. Tem certeza?
Certo .Vamos ver se eu entendi direito, Sr. Adalberto.
O senhor. disse que estava parado uns tempos na casa de sua amiga. Como é mesmo o nome dela?
Conceição. Ah, é isso. Conceição. Tereza era sua esposa, correto?
Respiração descompassada, mãos trêmulas, Adalberto, olhou firmemente para o delegado e disse:
Faz muito, muito tempo mesmo que não vejo a Tereza, estávamos morando em casa separada.
Sr. Adalberto não estou perguntando nada.
Claro, claro, só estou querendo colaborar.
Vamos por parte. Então, o senhor estava na casa da sua amiga, militante política com um plano para seqüestrar o presidente em sua visita ao Rio, correto?
Sim.
Pelo amor de Deus, homem, como posso acreditar numa loucura dessas. Porque não confessa que assassinou sua mulher, que ela o traía, que perdeu a cabeça. Essas coisas acontecem, sabe. E ademais confessando, a pena será menor.
O doutor está me acusando sem provas, quero dar um telefonema , falar com meus advogados.
O telefone está sem linha, chove muito, em dias assim é quase impossível conseguir uma ligação.
Porque o senhor correu quando avistou a polícia?
Não corri da polícia, é que quis alcançar Conceição.
Ela estava fugindo do senhor, o que houve? desentenderam-se, são amantes, ela é bonitinha.?
Por favor, delegado, vamos com calma.
Calma, o que ? Já cansei dessa sua lenga-lenga.
Guardas, algemem o homem..
Adalberto acordou com dores nas costas, noite mal dormida, que sonho terrível. Tereza ensangüentada, um cachorro lambia-lhe os lábios, cheiro de urina. Foi quando percebeu que estava todo molhado. Como aconteceu aquilo, não se lembrava.
Será que mijei dormindo? Melhor confessar tudo, não estou suportando, capaz de ter um treco. Não. Não posso confessar. É preciso manter a serenidade.
Seus joelhos doíam muito:
_guarda preciso de ajuda não consigo levantar-me.
O senhor pensa que todo mundo aqui é idiota, e?
Não claro que não, só preciso ficar em pé.
É uma jogada sua.
Mas é óbvio que não, sou um cidadão, não sou um marginal.
Por quê o sujeito aí pensa que é melhor que os outros é, só porque é estudado?
O que você sabe da minha vida?
Sabemos tudo doutorzinho de merda.
O delegado teve uma conversinha com sua mãe. O que? É, e nem precisou intimação não, foi só um telefonema, ela veio rapidinho. Deve gostar muito do meninão aí.
Lindos olhos os dela. E como fala bonito, falou foi muito. O senhor é mesmo nervosinho desde criança, e pelo jeito chegado numa malvadeza, ver bicho morrer, cheirar sangue.
Alguma tara doutor? Vá à merda.
Solta, solta meu pescoço, tenho meus direitos, senhor policial.
Então porque o sujeito aí não desembucha, quem sabe eu entenda.
Não tenho nada a falar com o senhor.
Azar o seu, vai apodrecer nesta cela.
Por um momento Adalberto pensou em confessar, chamar o delegado explicar direitinho o que realmente aconteceu, talvez ele compreendesse, era um homem. E Tereza deixava qualquer um louco.
Não, não podia esperar por compreensão, de nada adiantaria apelar para honra, dizer que perdeu a cabeça , que a amava, que não conseguia viver com a traição. Falar de suas tardes de angústia , enquanto Tereza retocava o batom, seu cheiro doce ainda na memória, suas pernas levemente bronzeadas, os cabelos molhados, a imagem do amante. Eles juntos.
Não, no fundo sabia-se um fraco, um conservador, arraigado a velhos costumes, velhas idéias.
O jeito era negar, negar, não fora ele e pronto. Limpou tudo antes de sair, a mesa, a garrafa de vinho, as taças, admirava sua organização, seu jeito excessivamente detalhista.
Só não mexeu mesmo no corpo estendido no meio da sala, o punhal encravado no ventre, a poça de sangue que se formou, e o último olhar de Tereza. Porque será que aquele olhar ,feito o da mãe, incomodava-lhe tanto.
Ainda hoje, passado tanto tempo, sentado em frente ao mar , relembra cada detalhe, a amiga Ceição, Tereza, a mãe, os bichos , a infância, as noites na prisão, solidão e tristeza.
Mas nada, nada se compara ao azul daquele olhar, ou seria verde, como o mar..

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

"Era isso a vida, pois muito bem, outra vez... F.N.

Navalha cortante - sueli aduan

Vem, Vem. Não devagar,
como à noite, lentamente, no fim do dia

como à lua, apagando o brilho do sol
Vem com força
cobra traiçoeira rastejando pelo mato,
gata gritando no cio,
tigre no pulo da presa.
Navalha cortante
cravada em minhas costas
Vem sem mentir
Vem sem fantasia
Que eu espero pronta.
Feito um rio de lavas
Feito um índio em guerra
Feito um titã
Navalha cortante
Cravada em tuas costas.

domingo, 2 de novembro de 2008

Avidamente-sueli aduan



A matéria me seduz
O real me fascina
Avidamente olho para o mundo
O concreto e o abstrato
O som e o silêncio
O poema
As palavras e as coisas
Distância encantatória
Entre o sentir e o dizer
O estar no mundo
Palavras lúcidas,
Palavras oníricas,
Momento de epifania
Bailarina
sueli aduan


Brinco de bailarina,
bailarina
que pé ante pé
gira, gira
gira gira
gira

rodopia , rodopia,
rodopiaaarodopiaaaaaa.


Nua sobre teu corpo, caí,
c a í

c a í.

Delírio.

sábado, 1 de novembro de 2008

DãoDão e Zé Pelonga- Sueli Aduan
Voltou para casa no finalzinho da tarde, já escuro. Entrou pela porta dos fundos, bem devagarinho, com cautela. Não queria que mãe o visse. Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Choro baixinho, soluço seco, engolido. Como doía, vergonha e tristeza.
O calção todo sujo de barro, camiseta manchada, as vozes em sua mente, os xingamentos ganhando força na medida em que revia cada cena.
Quando querem meninos são cruéis.
Menino franzino, solitário, Dãodão ia passando em revista cada ato falho, cada oportunidade perdida. Sabia dos erros cometidos. Evitá-los. De que jeito?
Nessas horas só uma imagem apaziguava seu coração, a figura do avô sentado em sua cadeira de balanço, pra frente, pra trás, num ritmo suave, a conversa mansa.
Vô era amoroso, homem bom, sempre pronto a escutar, a contar estórias.
Falava da vida difícil de menino, de gente grande sempre pronta a interromper brincadeiras tão sérias, a dar ordens sem precisão. Gente esquisita.
Na época do plantio, meninos e meninas corriam cantando em meio ao campo.
Só paravam mesmo no momento de colocar a semente na terra, tudo feito como numa festa. Um ritual quase religioso, não fosse a safadagem ao olhar as meninas, feito bicho cobiçando preza.
Dãodão achava tudo tão natural.
Vô abençoava a todos antes do plantio, seus olhos claros transmitiam tanta certeza, como se o fruto já estivesse ali. Mãe não. Mulher sofrida, só sabia obedecer ao pai, fazer tudo com presa, com medo.
E pai só fazia ralhar.
Dãodão gostava mesmo é de escutar o vô. Ria muito com as estórias que ele contava. Tinha a do Tibúrcio, que levara uma baita surra quando o pai o pegou escondidinho espionando Carmela se despir. Linda como a luz da lua.
E vô dizia:
-Qué coisa mai bunita qui vê muiê tirano ropa. Bem devagarinho, o saiote iscurregando, as anca balançando, i a gente ficano loco.
Dãodão ria, e vô falava:
-Ri não muleque, muiê é coisa séria, é danação.
Danação mesmo era o que Dãodão sentia agora, ali sozinho, sem a presença alegre do avô, sem suas estórias, sem seus conselhos. Tinha certeza que só vô iria acreditar que ele fez de tudo, correu, até driblou, mas não conseguiu.
Mas vô tinha morrido, ou como dizia Tibéria:
Morreu não, ficou encantado lá no milharal. Dãodão não tinha medo. Medo mesmo, tinha do pai gritando todo dia:
-Vai, treiná minino. Jogá bola, sê jogado, ficá rico, i imbora do Cariri. Fica aí falano suzinho, parece reza de nêga.
E não é que era mesmo, quase uma oração, uma ladainha. Mal rompia a manhã, Dãodão abria a janela, e junto com o vento fresquinho elas chegavam. Como uma bola que um jogador passa ao outro, as palavras vinham rolando.
E Dãodão lembrava-se novamente do avô, de sua voz rouca:
-Dão, vem qui minino. Dão, vem. Vou ti insina fazê uma coisa linda que gira, gira como tudo nesse mundão.
E naqueles fins de tarde sentados na varanda, ele e vô pegavam revistas, pauzinhos e o brinquedo ia surgindo.
Dão, é ansim: ocê tira as foia da revista, enrola bem enroladinho, fica qui nem um canudinho. Faiz um montão, i dispôis vai culando nos pauzinho, dai sua peorra tá pronta. I é só rodá no chão. Ela roda, roda até cair.
Dão olhava as revistas com seus olhos curiosos, olhava o formato de cada palavra e gostava do que via.
Seus olhos brilhavam. Vô, homem sempre atento a tudo dizia:
-Si preocupa não Dão. Um dia ocê vai pra escola e aprende as palavra, qui são bela cumo muiê. Cheia de força e mistério, iguar elas. Óia essa: “coração”, qui palavra qui faiz a gente pensa! Óie outra, que belezura: “pé”. I essa intão: “mão”. São tantas,qui enche essa vida doída da gente e dão uma alegria.
Foi tomado por essa alegria sem explicação que Dãodão sentiu uma coisa esquentar dentro dele, bulir com ele.
A lembrança da peorra, as palavras do vô ganhando força tomaram conta de seu corpo, franzino, e ele sentiu-se como um gigante.
Tomado por esse mistério enxugou os olhos, abriu o guarda-roupa. De soslaio viu a peorra guardada. Pegou uma camisa limpinha, trocou o calção sujo de barro, as mãos já seguravam a bola. Abriu a porta do quarto e correu, correu, correu. Só parou quando chegou ao campinho.
Os meninos a olharem para ele. Zé Pelonga com um sorriso maroto.
A desforra chegara.
Dãodão colocou a bola no chão, deu o primeiro chute, a partida recomeçava.
Foi uma passa-passa, um corre-corre, olho no olho.
O amigo Zé Pelonga fez o passe. De frente pro gol, Dãodão chutou. A bola entrou lentamente, girando, girando: Goooooooooooool. Golaaaaaaaaço.
Uma mistura de alegria e tristeza naquele fim de tarde.
Vô tinha razão, as palavras têm força e mistério. E tudo gira no mundo.
Foi de goleada vô!