sexta-feira, 30 de outubro de 2009

De todas as coisas...

De todas as coisas que eu tive as que mais me valeram,das que mais sinto falta, são as coisas que não se pode tocar.

São as coisas que não estão ao alcance de nossas mãos.
São as coisas que não fazem parte do mundo da matéria.

(O cheiro do Ralo-Lourenço Mutarelli)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"MUNDO E CORPO" sujeito e objeto


Quando minha mão direita toca a esquerda, sinto-a como uma coisa física, mas no mesmo instante, se eu quiser, um acontecimento extraordinário se produz: eis que minha mão esquerda também se põe a sentir a mão direita. Nele (meu corpo) e por ele não há somente um relacionamento em sentido único daquele que sente com aquilo que ele sente: ocorre uma reviravolta na relação, a mão tocada torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato está espalhado por todo o corpo, que o corpo é ‘coisa sensitiva’, sujeito e objeto. A mão direita é sujeito? A esquerda é objeto? Ou ambas sujeito e objeto? Parece que tais questões deixam de ter importância quando nos preocupamos com a experiência sensível ou com a busca do ser bruto. A experiência tátil, o tocar e o ser tocado, bem como a experiência visível, ver e ser visto, emergem de um mesmo tipo de ser. O corpo pertence às duas ordens do sujeito e do objeto ao mesmo tempo. Tal relação pode ser transposta para a relação corpo e mundo. O corpo também pertence à ordem das coisas assim como as coisas também pertencem à ordem do corpo. É também no plano do sensível que estará a possibilidade de percepção do outro. O outro habita um mesmo campo sensível, embora não habite a mesma consciência. Mas a experiência sensível é uma espécie de entendimento anterior à qualquer clivagem sujeito-objeto ou consciência-mundo.
Mundo e corpo são simultaneamente sujeito e objeto. (M.Ponty)
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Maurice Merleau-Ponty escritor e filósofo líder do pensamento fenomenológico na França, nasceu em 14 de março de 1908, em Rochefort, e faleceu em 4 de maio de 1961, em Paris. Estudou na Ecóle Normale Supérieure em Paris, graduando-se em filosofia em 1931.
Em 1955 publicou"As Aventuras da Dialética".

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

da série : tenho um amigo que disse que eu:

Estou totalmente errada quando converso com qualquer um, que eu só devia conversar com os amigos mesmo, ou ainda, com aqueles que acabo conhecendo por intermédio dos próprios amigos, numa festa, num jantar, num teatro, saber mesmo quem é a pessoa, não assim , qualquer um.
O que será ele quis dizer com qualquer um? O problema, claro, não está no um. Um somos todos, a questão é o qualquer. Esse cara desconhece o peso que as palavras possuem, senão não seria tão depreciativo.
Será que ele nunca pensou que uma grande amizade pode nascer assim, desses encontros casuais, não é difícil isso acontecer não.
tenho um amigo que disse que o grande amor da sua vida surgiu assim inesperadamente. Numa noite, quando andava à toa no calçadão na espera que o sono chegasse viu um vulto que se aproximava em sua direção, a princípio ficou assustado, mas continuou andando normalmente, ao passar pela pessoa não resistiu puxou uma conversa. Esse meu amigo é tagarela mesmo, feito eu. Acho que vou começar a andar no calçadão, vai que numa noite dessas...
tenho um amigo que disse que a gente pode machucar, provocar dor em alguém só com palavras. Esse meu amigo é todo explicadinho, foi logo completando:
_ não aquela dor de quem já levou tapa, chinelada, cintada, e que deixam vergões vermelhos, ardentes. A dor da palavra não deixa marcas visíveis, fica tudo na mente latejando... latejando, dura quase pra sempre. Esse meu amigo sabe das coisas.
Tenho um outro amigo, grande amigo, esse sim, sabedor da força das palavras. Ele disse que adora me ver passar batom, que faço biquinho, e parece que estou a falar, falar vermelho, falar perfumado...
disse isso sorrindo, com um olhar cheio de poder, poder até das palavras não ditas, mas ainda bem que as escutei ...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

...como a alma de um homem

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens."
João Guimarães Rosa

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

É PRECISO FUGIR CONCENTRICAMENTE"

Não basta fugir.
É preciso fugir no bom sentido: fugir do tédio, da fome, da guerra.
Não se deve fugir excentricamente, é preciso fugir concentricamente.
Fugir o mundo para poder reinventá-lo um dia quem sabe maior, mais verdadeiro, mais justo, mais essencial.

Charles Ferdinand Ramuz nasceu e se formou na Suíça, chegou a dar aulas na Alemanha, viveu em Paris durante 11 anos e retornou à Suíça para viver uma vida recolhida e dedicada à literatura. A imagem de Ramuz ilustra a nota de 200 francos suíços, em circulação.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

"O TEMPO E O CÃO"



Lançamento do livro "O tempo e o cão- Maria Rita Kehl-abril/2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Você tem medo de quê?

Vou direto ao ponto: estive em Paris. Está dito e precisava ser dito, logo verão por quê. Mas é difícil escapar à impressão de pedantismo ou de exibicionismo, ao dizer isso. Culpa da nossa velha francofilia (já um tanto fora de moda). Ou do complexo de eternos colonizados diante dos países de Primeiro Mundo. Alguns significantes, como Nova York ou Paris, produzem fascínio instantâneo. Se eu disser “fui a Paris”, o interlocutor responderá sempre: “Que luxo!” E se contar “fui assaltada em Paris”, ou “fui atropelada em Paris”, é bem provável que escute: “Mas que luxo, ser assaltada (atropelada) em Paris!”
O pior é que é verdade. É um verdadeiro luxo, Paris. Não por causa do Louvre, da Place Vendôme ou dos ChampsÉlysées. Nem pelas mercadorias todas, lindas, chiques, caras, que nem penso em trazer para casa. Meu luxo é andar nas ruas, a qualquer hora da noite ou do dia, sozinha ou acompanhada, a pé, de ônibus ou de metrô (nunca de táxi) e não sentir medo de nada. Melhor: de ninguém. Meu luxo é enfrentar sem medo o corpo-a-corpo com a cidade, com a multidão.
O artigo de luxo que eu traria de Paris para a vida no Brasil, se eu pudesse – artigo que não se globalizou, ao contrário, a cada dia fica mais raro e caro –, seria este. O luxo de viver sem medo. Sem medo de quê? De doenças? Da velhice? Da morte, da solidão? Não, esses medos fazem parte da condição humana. Pertencemos a esta espécie desnaturada, a única que sabe de antemão que o coroamento da vida consiste na decadência física, na perda progressiva dos companheiros de geração e, para arrematar tudo, na morte. Do medo desse previsível grand finale não se escapa.
O luxo de viver sem medo a que me refiro é bem outro. O de circular na cidade sem temer o semelhante, sem que o fantasma de um encontro violento esteja sempre presente. Não escrevi “viver numa sociedade sem violência”, já que a violência é parte integrante da vida social. Basta que a expectativa da violência não predomine sobre todas as outras. Que a preocupação com a “segurança” (que no Brasil de hoje se traduz nas mais variadas formas de isolamento) não seja o critério principal para definir a qualidade da vida urbana.
Não vale dizer que fora do socialismo esse problema não tem solução. Há mais conformismo do que parece em apostar todas as fichas da política na utopia. Enquanto a sociedade ideal não vem, estaremos condenados a viver tão mal como vivemos todos por aqui? Temos de nos conformar com a sociabilidade do medo?....
Sei lá como os franceses conseguiram preservar seu raro luxo urbano. Talvez o valor do espaço público, entre eles, não tenha sido superado pelo dos privilégios privados. Talvez a lei se proponha, de fato, a valer para todos. Pode ser que a Justiça funcione melhor. E que a sociedade não abra mão da aposta nos direitos. Pode ser que a violência necessária se exerça, prioritariamente, no campo da política, e não da criminalidade.
Se for assim, acabo de mudar de idéia. Viver sem medo não é, não pode ser um luxo. É básico; é o grau zero da vida em sociedade. Viver com medo é que é uma grande humilhação.

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pelo departamento de Psicologia Clínica da PUC/SP e clinica, desde 1981, em consultório particular. É conferencista, ensaísta e poeta. Escreve artigos sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão e psicanálise para a imprensa. É autora de diversas obras, entre elas, Processos primários e Sobre ética e psicanálise.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

uma batida....só

eu descia a então, Rua XV de Novembro na altura da, não mais existente, “Lojas Singer Máquinas de Costura -Novas e Semi-novas”, ia em minha caminhada rotineira com destino certo e enfadonho: o colégio.
Com o pensamento longe, feito a pássaro livre em seu vôo matinal, eu seguia desatenta a tudo, na distância encantatória entre as coisas e o homem.
Quando uma batida forte, alucinante vinda da loja de discos...alterou os meus passos, acelerou meu coração, e, como disse o poeta: a anatomia ficou louca, tornei-me toda coração.
Inesquecível manhã, semáforo fechado, vermelho também dentro de mim, apenas uma batida e, toda uma nova harmonia, momento epifânico esse, quando ouvi pela primeira vez:
“ HELP”

Help....Help

domingo, 4 de outubro de 2009

da série: "tenho um amigo que disse que eu":

Não devia andar da maneira como ando na rua, que ontem ele me viu na avenida próximo aos Bancos, mexeu comigo e eu nem olhei, mas como posso ouvir alguém me chamar naquele inferno que é a avenida, ele é que não devia ficar chamando as pessoas, vai que a pessoa se distraia ouvindo o próprio nome, pronto, pode até acontecer um acidente.
Tenho um outro amigo que disse que eu sou assim mesmo, parece que vivo no mundo da lua. Ele disse que é louco pra saber o que eu penso quando estou andando pelas avenidas.
Não sei, respondi. Depende muito, mas acredito que é o que todo mundo pensa enquanto caminha na avenida, com todos esses carros pra lá e pra cá, sempre um prédio em construção, a gente sendo obrigado a desviar o tempo todo, quase andar na rua mesmo, tamanha confusão de cimento, pedras e pás.
Mas ele insistiu: Como assim o que todo mundo pensa? Nos depósitos a fazer, nos saques, nas contas a pagar ou nos carros bonitos que passam?
Claro que não respondi:
O obvio, não é?
E se um carro nos atropela, ou ainda se lá do alto daquele prédio caí uma pedra na nossa cabeça. Pronto.
Tudo que sonhamos acaba numa fração de segundos, as discussões que tivemos no dia anterior, a festa que programamos ir ao fim de semana, o abraço que recusamos, só pra darmos uma de durão... Ele arregalou uns olhos que eu nunca tinha visto, e gaguejando disse:
Você não é normal. O que será que ele quis dizer com:
Você não é normal? Eu acho que ele não conhece o prazer que dá pensar , nessas coisas simples. Ele é uma máquina e, com esses olhos arregalados então, parece mesmo uma máquina. Vou desligar esse cara.
Mas, é claro, que todas as pessoas pensam sobre isso, não necessariamente na avenida, indo de um Banco a outro, mas em algum momento da vida todo mundo já pensou:
E se eu morro agora?
Tenho uma amiga, que disse que eu sou luz, que todos somos luz, espíritos em evolução, e que não devemos ficar pensando nessas bobagens, que faz muito mal pra saúde.
O que será que ela quis dizer com:
_Faz muito mal à saúde.
Coitado do Platão, e daqueles caras que pensaram....pensaram, claro que não em pedras caindo, ainda que se tratasse de caverna, mas na escuridão do não pensar, da sombra da casa, da luz que ofusca, na ignorância de se tentar ser igual.
Tenho um amigo, grande amigo, desses que falam com a delicadeza do muito pensar, ele disse que devemos, sim, andar nas avenidas como quem enxerga girassóis, como quem vive no mundo da lua, mesmo que um carro...uma pedra...tudo é mesmo numa fração de segundos...um pensar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Cheguei ao limite...

Cheguei ao limite de minhas capacidades intelectuais. Percebo que poderei perdê-las a qualquer momento. Além disso, perdi muita gente querida, amigos e parentes. Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo e ensino, rodeado de pessoas que amava, me vejo cada vez mais solitário. Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai embora e perdemos o rumo de nossas reflexões.
De que valeram os 31 livros que publiquei? O que sobra de tudo o que a gente aprendeu, num momento-limite? Saí à procura de um tipo de sabedoria que me ajudasse a suportar a velhice e compreendê-la com serenidade. Só encontro consolo quando recito baixinho, para mim mesmo, os poemas que sei de cor.
A repetição é uma forma arcaica de conhecimento, mas eficaz, quando se vive num momento de domínio da tecnologia e do consumismo.
É repetindo esses poemas que aprendo coisas importantes sobre mim próprio. (Harold Bloom)

Harold Bloom é professor titular de Ciências Humanas, na Universidade de Yale, e já ocupou cátedra na Universidade de Harvard. Escreveu mais de 25 livros, entre os quais Hamlet: Poema Ilimitado, Gênio, Como e Por Que Ler, Shakespeare: A Invenção do Humano, O Cânone Ocidental, publicados pela Objetiva, além de O Livro de J e A Ansiedade da Influência