terça-feira, 29 de junho de 2010

Tomás de Aquino e a saudade

O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que em geral supomos. A força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos o que podemos pensar e sentir... Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Valem para toda a realidade humana as considerações sobre a "latência", que Moles tece em seu estudo O Kitsch. Valendo-se de uma metáfora fotográfica, ele fala de uma revelação das impressões confusas, pelo surgimento de um vocábulo: "O surgimento nas línguas germânicas de um termo preciso ("Kitsch") para designá-lo levou-as a uma primeira tomada de consciência: através da palavra, o conceito torna-se passível de apreensão, e manipulável... O trajeto científico para conhecer, começa por nomear. De fato, sem a posse da palavra Kitsch é-nos muito mais difícil reparar em que há, no fundo, qualquer coisa de comum entre o pingüim da geladeira, o anãozinho do jardim e o quadro de cores fosforescentes... É precisamente neste ponto fundamental da educação que Pieper insiste em Das Viergespann interação entre a possibilidade de percepção (e vivenciamento da realidade moral) e a existência de linguagem viva. O empobrecimento do léxico é assim, hoje, um dos principais problemas da educação, na medida em que gera um círculo, literalmente, vicioso: a falta de linguagem viva embota a visão e o vivenciamento da realidade; o definhamento da realidade esvazia (ou deforma) as palavras... Faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade. Certamente ocorre, antes da formação do conceito em nossa mente, aquilo que Tomás de Aquino chama de collatio, um ajuntamento e comparação de impressões, uma pré-abstração, feita pela "capacidade cogitativa" (para usar uma vez mais a linguagem do Aquinate). Contudo, enquanto não há conceito e palavra, andamos inquietos à busca deles, ou passamos à margem da realidade sem nem sequer a ver. Aquela inquietude que se manifesta tão claramente na teimosia com que nos esforçamos por trazer à memória um nome esquecido. A interação palavra-vida torna-se ainda mais decisiva quando se trata de atingir sentimentos mais sutis e complexos do coração humano: neste caso, cada povo costuma gerar a palavra que se apropria do sentimento que é mais conatural e, reciprocamente: o sentimento se torna como que conatural porque a palavra se apodera do falante desde a infância. Nesse sentido, Portugal e Brasil têm a sua palavra por excelência, que certeiramente penetra nos meandros do coração e atinge aquele complexo agridoce que chamamos saudade. Como, por exemplo, traduzir para outra língua o verso da canção de Isolda: "Das lembranças que eu trago na vida você é a saudade que eu gosto de ter...?" Tomás, no século XIII (quando mal havia português e não estava formada a palavra saudade), fez um agudo diagnóstico - em que inclui até a explicação causal - da saudade: a dor - diz ele - é por si contrária ao prazer, "mas pode acontecer que um efeito colateral (per accidens) da dor seja deleitável, como quando produz a recordação daquilo (pessoa, terra, etc.) que se ama e faz perceber o amor daquilo por cuja ausência nos doemos. E assim, sendo o amor algo deleitável, a dor e tudo quanto provém desse amor também o serão. Se a caracterização em si já é perfeita, ela se mostra mais genial ainda quando nos lembramos que São Tomás não era português nem brasileiro.

Conferências de Filosofia pesquisa:sueliaduan  
USP- 1998
L.J. Lauand

sábado, 26 de junho de 2010

Muros do silêncio

IV capítulo
Final
Era toda terra

Na volta para casa não pode deixar de olhar mais uma vez para o riacho, e  emocionar-se com os pedaços de gelo sob a  superfície formando uma espécie de manto branco.  Derrepente teve a leve sensação de já ter vivido esse momento. Observava um outro rio com águas mais escuras, e não estava só , ao seu lado um jovem trajando um paleto cinza e uma boina vermelha seguia. Gesticulava muito, apontava o dedo para o alto e, às vezes, gargalhava. Essa imagem a impressionou tanto a ponto de molhar os pés nos riacho como forma de saber-se presente, de que não estava a sonhar. Ao sentir a água gelada foi tomada por uma imensa alegria nunca sentida antes . E rindo correu pelos campos feito uma menininha  feliz ao encontro do pai. O pai que sempre esteve ausente, que nunca sorria , que sempre reclamava. 
Liu por um breve momento esqueceu-se de tudo, da vida difícil que levava ,do cesto de frutos,das mãos de sua mãe, da colina e de todo o resto. Só queria  sentir a vida fluindo ao seu redor. A aldeia viva que tanto desprezava agora pulsava dentro do seu coração. Ela era toda terra, flores, umidade e riacho.
E foi envolta numa espécie de nuvem que avistou o pai. De longe pode perceber que ele  conversava com um jovem. E para seu espanto ele trajava um paleto cinza e uma boina vermelha. Gesticulava muito, e junto com seu pai apontava o dedo para o alto, ambos gargalhavam. 
Liu sentiu o coração disparado, a boca seca, as pernas trêmulas e já não havia necessidade de explicar nada. Tudo estava claro como o branco do gelo cobrindo o rio.
Silêncio e morte entrecortados pelos muitos risos do homenzinho de boina vermelha.

 

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Muros do silêncio

 
 III capítulo
O dia amanheceu
Derrepente um pensamento surgiu em sua mente, mas tão forte, tão vivo, como se  houvesse alguém ali junto ao seu ouvindo, soprando conselhos, dando-lhe ideias. E eram boas e simples.
Num instante estava novamente vestida com sua velha bota , o casaco verde claro e um cachecol tecido pela mãe há muitos e muitos anos.
Abriu lentamente a porta do quarto e pé ante pé desceu a colina. Com passos firmes e decidido. Não poderia mesmo ser diferente. Não para ela .
Ainda que lágrimas enchem-se seus olhos, havia um sorriso se formando em seus lábios quase imperceptível ao olhar alheio. O sorriso que é fruto da  coragem e  da ousadia daqueles que escolhem o próprio caminho. 
E, foi com essa alegria que Liu se apresentou ao chefe da aldeia. Um homem de olhar penetrante, voz serena e com uma infinita capacidade de ouvir.  
Liu falou por horas e horas, juntos ali sentados de costas para o riacho viram o dia amanhecer e a neblina se dissipar como numa passe de  mágica.
Liu já não queria mais ir embora da aldeia. O sonho há tanto acalentado também se dissipou. Tudo o que queria ,agora, era voltar para casa e explicar ao pai. 

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Muros do silêncio


II capítulo
A difícil jornada 
Triste também era olhar a terra e assistir lentamente a morte das plantas. O suor de tantos meses ali perdido, junto a  fome e a miséria do povo da aldeia. Liu sofria com tudo isso e sabia: - Era preciso fazer alguma coisa. Mas o quê? Pai  reclamava ,reclamava, mas não queria ir embora, tentar novos rumos. Era apegado ao lugar. Liu lembrava da infância, da mãe descendo a colina com o cesto carregado de frutas e seus olhos enchiam-se de lágrimas. Recordar a mãe segurando sua mão, entoando lindas cantigas com voz forte e serena, era o que fortalecia e apaziguava seu coração para a difícil jornada .
Assim passaram -se anos. Mae e filha descendo e subindo a colina todos os dias, regando,colhendo e  vendendo as flores e os  frutos da terra.  Com a morte da mãe, agora seu caminho era feito com o pai. Não era o mesmo caminhar. Nem o caminho era o mesmo. Não havia cantigas no ar e as mãos iam balançando junto ao corpo num abandono só.
Liu olhava  nos olhos de seu pai, desviava o olhar rapidamente e  com o coração apertado sonhava com um outro viver, um outro mundo. Sabia  que un dia, não muito distante, não estaria mais ali. E isso era tudo o que queria.
Mas porque,então, perdeu o controle? E como seguir adiante sem resolver o acontecido. Esses pensamentos ,naquela noite fria, era o que preenchiam sua mente.

terça-feira, 15 de junho de 2010

"O imponderável"

Agustina Bessa-Luís 
(Maria Agustina Ferreira Teixeira Bessa-Luís)

Trecho- "A Sibila"
[... era Quina a primeira a auscultar uma conduta estranha, um gesto, uma palavra que se não previram, um passo que fugiu do equilíbrio, uma decisão falhada, uma razão que sofreu um súbito reencontro e daí surgiu o inesperado. O imponderável nas criaturas era para ela motivado pela influência de espíritos favoráveis ou malignos, sombras manifestas do além. Mercê dum sentido finíssimo para se embrenhar nos fenômenos da natureza humana ou simplesmente do meio vital, com os seus elementos, suas causas e efeitos, depressa adquiriu uma sabedoria profunda acerca de todos os ritmos da cons­ciência, do instinto, das forças telúricas que se conjugam no fatalismo da continuidade. Conhecia os homens sem o aprender jamais. Sabia, uma por uma, qual a reação que correspondia a determinado tipo, perante determina­do fato. Adivinhava-lhes os pensamentos, mesmo antes de ela os poder raciocinar. Um sorriso fazia-a pôr-se em guarda, assim como uma aranha que tecia a sua teia duma folha a outra dum pé de malva a decidia a mandar espalhar o grão na eira, ou os carolos de milho ainda úmidos da debulha. Como o que distingue para lá das montanhas qual a sombra de fumo, de pó ou de nuvem; como o que na floresta conhece o rasto do animal em tempo de caça ou tempo de amores; como o que aspira no vento o perigo, como o que pressente na atmosfera a confiança ou a traição, assim ela vivia, intensamente adaptada com essa capacidade selvagem de defesa, de astúcia, de previsão e pré-conhecimento da vida e das coisas e que o homem civilizado, unido em rebanhos pacíficos, amparado em convenções artificiais, vai perdendo ou nunca desenvolve por completo.]
1ª edição de 1954. Guimarães editores.

pesquisa e título no blog- sueli aduan

sexta-feira, 11 de junho de 2010

    Corpo lugar da Alegria
"Um pensar em Deleuze e Vinícius"
Houve um tempo, há muito, muito tempo em que a alegria era pura mania,e, as palavras usadas eram efetivamente vividas na loucura do dia-a dia e do encontro, encontro como parte da vida.
Essa mania: bom delírio, delírio do poeta, delírio do contemplador, delírio do pintor que descobre a cor, era só o que existia, feito a uma bailarina que só pode dançar na ausência do pensar, ausência do saber-se finita. Medo da morte, e então perder-se no movimento do corpo lugar da alegria.

"...é melhor ser alegre
que ser triste
a alegria é a melhor coisa que existe
é assim como a luz no coração......,
mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza,
senão, não se faz um samba não...."

quarta-feira, 9 de junho de 2010

da série: Tenho um amigo que disse que eu:


Não deveria fazer essa cara de “pôxa vida” sempre que estou triste. Tentei explicar que ele estava totalmente equivocado, não estava triste, não. E que jamais passa pela minha cabeça fazer caras e bocas. E, se estava me vendo assim, era fruto da sua própria imaginação, ou então ele mesmo é quem faz uso desses artifícios para chamar a atenção. Não tive nem tempo de completar a frase, quando dei por mim, tinha desaparecido. Vai ver ficou bravo. E o que eu posso fazer se é a mais pura verdade. Meu olhar e o formato da minha boca passam mesmo essa impressão, o da tristeza. Um quê de melancolia.
Já um outro amigo riu muito ao saber dessa história e me aconselhou a usar lápis para contornar os olhos e um bom batom vermelho. Esse recurso, disse-me, daria um brilho todo especial ao meu rosto. E eu lá quero ter um brilho que não seja o meu mesmo? Não que eu não use maquiagem. Uso, claro, sou vaidosa sim. Mas com a intenção de brilhar? Por favor.
Essas coisas vêm de dentro mesmo, falamos em uníssono, eu e outro amigo que adentrava todo feliz na conversa. E foi logo completando: minha cara, esse teu ar de melancolia é você por inteiro, como o meu é esse ar de bonachão. O que seria de nós se não fosse essa singularidade. É verdade mesmo. Numa fração de segundo revi rostos de pessoas que mal conheço e constatei o quanto nos enganamos ao julgar um olhar, um sorriso, um rosto mais tenso, uma ruga, um andar, um falar.
Já um outro amigo, amigo de cabeceira, mas nem por isso distante, com seus belos textos me ensina que é impossível mesmo nossas expressões faciais, corporais, atestarem todo o sentir. Que não nos apercebemos nem da tristeza, nem da alegria que vai dentro de cada um. Porque tudo é muito dentro, no recôndito do ser. E mesmo as palavras ditas chegam-nos de tal maneira que somos sempre remetidos a nós mesmos e a nossa visão de mundo.
Na hora me deu um vazio e até fiz uma cara de “pôxa vida”, mas seus ensinamentos, frase a frase, página a página, falaram mais alto. Nada há a fazer. É da vida, é do homem, e nisso reside toda a beleza.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

E criar, a grande redenção.

Nossa cultura não nos incentiva a lutar, mas a chorar, a nos vitimar. Valorizamos e protegemos os fracos ao mesmo tempo criticamos os ousados, criativos. Consideramos o trabalho uma penalidade, e nosso sonho maior é sempre descansar. Mas a vida é sempre o resultado de uma luta. O fim da luta é a morte. E criar, a grande redenção.
Para Nietzsche criar, mais do que um gesto individual, é um processo de integração e participação na vida. A vida cria em suas constantes transformações, em seu eterno jogo de vida e morte. Ao homem cabe dizer sim ou não a este processo, isto o define como homem. Ao dizer sim ao que os gregos chamavam de devir, o vir-a-ser constante das coisas, o homem se vê inserido em um processo que necessariamente leva à criação. Criar é suportar as contradições e intensidades da vida no corpo, é transformar em signo este movimento excessivo que é viver.

A PALAVRA
é uma roupa que a gente veste
uns gostam de palavra curtas
outros usam roupa em excesso
existem os que jogam palavra fora
pior são os que usam em desalinho
cores brigando,substantivo em luta
alguns usam palavra rara
poucos ostentam palavras caras
tem quem nunca troca
tem quem usa a dos outros
a maioria não sabe o que veste
alguns sabem e fingem que não
uns nunca usam a roupa certa para a ocasião
tem os que se ajeitam bem com pouca peça
outros se enrolam em um vocabulário de muitas
eu adoro usar palavra limpa
tem gente que estraga tudo que usa
com quais palavra você se despe?
Viviane Mosé´

Viviane Mosé - É psicóloga e psicanalista-Mestra e doutora em filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

quinta-feira, 3 de junho de 2010

E comíamos fruta madura


A casa abandonada, os crisântemos plantados, os retratos na parede, o relógio marcando o tempo. Tempo em que a vida era plantar e colher. Pegar a jabuticaba no pé, sentir seu sumo escorrendo pela boca à fora, correr entre os campos floridos e deitar na relva um corpo cansado, porém leve com a pluma. Olhar longe o verde da campina tendo um céu límpido como manto. Assim eram os dias, assim era a vida.
É essa imagem que trago dentro do peito, feito ferro em brasa quente a marcar o boi no pasto. E ela queima, dilacera deixa esse gosto amargo de dias parados, noites sem fim.
Onde colher, agora, o crisântemo da minha infância? Como arrancar da terra com mãos envelhecidas a flor do passado? Enfeitar o vaso da sala, e sentir o aroma da jabuticaba como se no quintal elas estivessem. Rever tua figura entrando pela porta tirando o chapéu, beijando meus cabelos negros e a noite ouvi-lo contar as histórias de seu tempo de menino. O que ficou de tudo, meu pai? Das conversas ao entardecer. Dos planos e dos sonhos. Da tosse da tia Maria no quarto ao lado, tudo tão real. E comíamos fruta madura, e raspávamos o prato de sopa. E a sopa era boa.
O que ficou?
Um nome, uma terra. Verdes campos. 

terça-feira, 1 de junho de 2010

Aquietem-se! Uma leitura cantada

O mistério das coisas, onde está ele? Onde está ele que não aparece. Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Aquietem-se!
Sempre que olho para as coisas e penso no que os homens pensam dela, entristeço-me. Tudo tão cinza, apenas o amanhã a nos condenar, exigir que tudo volte feito ciranda ou vá embora para sempre.
Para sempre? Nada é para sempre.
Quem fala de hemorragia sem nunca ter sangrado é um impostor. O amanhã virá antes do que você pensa,
Quando chegar o momento esse meu sofrimento vou cobrar com juros. Juro todo esse amor reprimido esse grito contido.
Há poetas, artistas, idéias e palavras.
O que há do lado de dentro e não derrama não deságua não se espalha, nenhuma valia tem.
O que importa? O que importa é ver, ver sem estar a pensar idéias, palavras,
Basta poeta! Tua palavra salvará o mundo?
Não, mas ultrapassa o limite, adormece as crianças e acorda os homens.
É preciso.