O pensamento e a vida estão mais ligados à linguagem do que em geral supomos. A força viva da palavra não só transmite, mas até mesmo gera e preserva, em interação dinâmica, o que pensamos e sentimos o que podemos pensar e sentir... Sem a palavra, nossa percepção da realidade é confusa ou nem sequer chega a ocorrer. Valem para toda a realidade humana as considerações sobre a "latência", que Moles tece em seu estudo O Kitsch. Valendo-se de uma metáfora fotográfica, ele fala de uma revelação das impressões confusas, pelo surgimento de um vocábulo: "O surgimento nas línguas germânicas de um termo preciso ("Kitsch") para designá-lo levou-as a uma primeira tomada de consciência: através da palavra, o conceito torna-se passível de apreensão, e manipulável... O trajeto científico para conhecer, começa por nomear. De fato, sem a posse da palavra Kitsch é-nos muito mais difícil reparar em que há, no fundo, qualquer coisa de comum entre o pingüim da geladeira, o anãozinho do jardim e o quadro de cores fosforescentes... É precisamente neste ponto fundamental da educação que Pieper insiste em Das Viergespann interação entre a possibilidade de percepção (e vivenciamento da realidade moral) e a existência de linguagem viva. O empobrecimento do léxico é assim, hoje, um dos principais problemas da educação, na medida em que gera um círculo, literalmente, vicioso: a falta de linguagem viva embota a visão e o vivenciamento da realidade; o definhamento da realidade esvazia (ou deforma) as palavras... Faltam-nos os conceitos, faltam-nos os juízos, falta-nos acesso à realidade. Certamente ocorre, antes da formação do conceito em nossa mente, aquilo que Tomás de Aquino chama de collatio, um ajuntamento e comparação de impressões, uma pré-abstração, feita pela "capacidade cogitativa" (para usar uma vez mais a linguagem do Aquinate). Contudo, enquanto não há conceito e palavra, andamos inquietos à busca deles, ou passamos à margem da realidade sem nem sequer a ver. Aquela inquietude que se manifesta tão claramente na teimosia com que nos esforçamos por trazer à memória um nome esquecido. A interação palavra-vida torna-se ainda mais decisiva quando se trata de atingir sentimentos mais sutis e complexos do coração humano: neste caso, cada povo costuma gerar a palavra que se apropria do sentimento que é mais conatural e, reciprocamente: o sentimento se torna como que conatural porque a palavra se apodera do falante desde a infância. Nesse sentido, Portugal e Brasil têm a sua palavra por excelência, que certeiramente penetra nos meandros do coração e atinge aquele complexo agridoce que chamamos saudade. Como, por exemplo, traduzir para outra língua o verso da canção de Isolda: "Das lembranças que eu trago na vida você é a saudade que eu gosto de ter...?" Tomás, no século XIII (quando mal havia português e não estava formada a palavra saudade), fez um agudo diagnóstico - em que inclui até a explicação causal - da saudade: a dor - diz ele - é por si contrária ao prazer, "mas pode acontecer que um efeito colateral (per accidens) da dor seja deleitável, como quando produz a recordação daquilo (pessoa, terra, etc.) que se ama e faz perceber o amor daquilo por cuja ausência nos doemos. E assim, sendo o amor algo deleitável, a dor e tudo quanto provém desse amor também o serão. Se a caracterização em si já é perfeita, ela se mostra mais genial ainda quando nos lembramos que São Tomás não era português nem brasileiro.
Conferências de Filosofia pesquisa:sueliaduan
USP- 1998
L.J. Lauand
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