domingo, 27 de novembro de 2011

Insólito aconteceres

Era só uma porta, fechada. Não fosse o esquecimento do número,  exatidão de mundo  a mim distante,  e uma pequena movimentação nos corredores eu diria que minha figura ali era no mínimo risível.

A angústia que seguiu à abertura da porta, ainda que rápida, povoaram minha mente de recordações da infância, e eu relembrei meu pai sempre sentado em muros, muretas, corredores; minha mãe sempre a gritar com o cachorro que, porta aberta, adentrava em busca de um afago, um carinho.

Sempre as portas. Sempre essa busca. Seres frágeis que somos, sedentos de beijos úmidos, palavra/poesia, sussurros noite adentro.
Esse insólito do viver.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

da serie Tenho um amigo que disse que eu:


Ando nas ruas como se estivesse no ar, pisando nas nuvens. Não é aquele meu amigo que já comentei, aqui, várias vezes não. Ainda que ele também tenha falado algo semelhante, mas de lá pra cá mudei muito. Aliás, a gente muda com o tempo, ou melhor, a cada momento, a todo instante. Não que isso seja problema, creio eu. E também nada a ver com ser volúvel, inconstante, não ter opinião formada e por aí. E tenho um amigo, ou melhor, nunca nos conhecemos pessoalmente, mas eu o admiro tanto que, ouso chamá-lo de amigo, nas minhas noites de insônia são suas músicas que me tocam profundamente: — “eu prefiro ser uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre todas as coisas.”

Já outro amigo disse que não é nada disso — é que minha maneira de andar está envolta em um grande mistério e que isso fica impregnado no caminho por ando passo. Nossa que susto, numa pensei que o simples ato de andar pudesse provocar tanto. Mas provoca. E a bem da verdade, seja lá o que isso quer dizer, não concordo com esse amigo não, pois todos estão envoltos em grande mistério. Não só eu. É que cada pessoa tem seu jeito singular de caminhar, uns mais rápidos, apressados com seus infindáveis compromissos e envolvidos com o intenso movimento da cidade; outros com seu caminhar lento, compassado, feito eu, absortos com a paisagem com a beleza do movimento ou matutando algum pensamento, relembrando momentos.  E não é que nesse exato momento chegou meu velho e bom amigo que, todo prosa foi logo dizendo: — caminho e caminhante o que importa mesmo e enxergar além do que se vê. Eu ri  aquele meu rizinho que começa no cant......


segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Lá fora, o dia. (De corpos e esmaltes)


Corpo ereto, cabelos cuidadosamente desarrumados , ar blasé, e vestida de vermelho ela descia as escadas lentamente. Equilibrando-se no salto da sandália preta não ousava segurar no corremão. O esmalte ainda úmido podia borrar, e se tinha uma coisa que ela não admitia era mulher descuidada. Costumava dizer que era natural esse cuidado todo, um ato corriqueiro, quase automático. Não fossem os muitos elogios que recebia: — bela, deslumbrante, gatíssima e uma infinidade de adjetivos dos mais simples aos mais sofisticados, alguns até em outro idioma.

E ela se deixava levar toda orgulhosa. Mas era compreensiva e sabia que nem toda mulher podia se dar a esses pequenos luxos, e na sua imensa delicadeza segredava à amigas seletas — entendo perfeitamente, é uma questão de tempo. E se tinha uma coisa que ela não abria mão era da sua liberdade. Levantava cedo só para ter o prazer de ler o jornal - das notícias que aconteciam do outro lado do mundo, à  um cachorrinho perdido, tudo lhe interessava. Botânica, gastronomia, moda, filosofia, literatura, cinema....

E naquela noite, como em tantas outras, ela descia lentamente as escadas mais bela que nunca. Vestida de vermelho, pronta para mais um deliciosa festa noite adentro. Era tudo que queria ,que precisava. Viver, dançar, sorrir.  Ser. E num gesto tresloucado, inesperado seus dedos tocaram com força o corremão. Com o esmalte todo borrado um olhar vago, distante, úmido e  as mãos trêmulas,  acordou. 
O dia amanhecia lá fora . Era preciso correr.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

da série- Tenho um amigo que disse que eu:


Sou oito ou oitenta; quente ou frio e que comigo não há meio termo não. Eu ri aquele meu rizinho que, começa no cantinho esquerdo da boca e vai lentamente se abrindo, na realidade e mais um mover de lábios mesmo. Um riso quase imperceptível, eu diria, para raros observadores. O que não é o caso desse amigo, pois está sempre na superfície das coisas, ler nas entrelinhas nem lhe passa pela cabeça ainda que cante aos quatro cantos suas proezas meditativas. Mas amigo é amigo e a bem querência nos faz relevar esquisitices, pois temos as nossas.

Já outro amigo disse que é exatamente o contrário — sou é água morna dura de ferver. Lembrei-me do meu pai na hora com seus olhos brilhantes e sua voz rouca, naquelas tardes de outono quando sentávamos na varanda e eu em silêncio ouvia seus ensinamentos. Conhecedor do que ia dentro de mim sabia de minhas tristezas só pela maneira como eu bebia o chá ou mastigava um pedaço de bolo, ou ainda, da minha perplexidade frente a um mundo feito de aparências. E se por um lado, como pai, preocupava-se com minhas escolhas, como amigo, sabia que eu não podia fazer diferente, pois, tanto para ele quanto para mim nunca houve oito ou oitenta, certo ou errado, mas descobertas. Busca para ser como se é. Pelo caminho do meio onde os extremos passam longe e a água ferve lentamente.