quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

"Não há piedade nos signos"


Fala
Orides Fontela

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.
(Toda palavra é crueldade.)

Orides Fontela nasceu em São João da Boa Vista, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1940. Começou a escrever poemas aos sete anos de idade. Formada em Filosofia pela USP, foi professora do primário e bibliotecária em escolas da rede estadual de ensino. Publicou Transposição, Helianto, Alba, Rosácea, Trevo 1969-1988 e Teia. Recebeu o prêmio Jabuti, em 1983; e o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte

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quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Um outro olhar sobre o mundo


Faces da sifilização do ethos brasilienses
Sob aquela velha opinião formada sobre tudo...

O conceito de "folha" surge do fato de igualarmos todas as folhas. Acreditamos saber algo das coisas mesmas... e no entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo correspondem às entidades de origem.

O homem possui a faculdade de apreender a realidade e criar signos, estruturando-os em universos culturais e semiológicos. É capaz de dar sentido ao que carece de sentido, e também ao desconhecido. E o faz por meio da linguagem. Sem a projeção do homem, os fenômenos naturais existem apenas em estado amorfo. Em outras palavras, se não são recortados culturalmente pelo homem, permanecem desprovidos de sentido; não passam de uma abstração, sem limites de apreensibilidade. Se há limites, esses são dados pela formação do homem, cuja vida cotidiana está enraizada numa cultura e numa história as quais influenciam sua própria visão de mundo.
No início do século XX, disse F. Saussure aos discípulos: "é o ponto de vista que cria o objeto". Diante de um mesmo evento, as apreensões do objeto são diferentes e geralmente conflitantes entre si, podendo haver tantos pontos de vista, quantos forem os recortes do mundo. Se esses são limitados, resultam de limitações próprias à (de) formação do informador, ou da visão parcial de mundo dos recortes. Não é a realidade que muda, mas apenas o modo de observá-la, por isso os sistemas conceptuais variam de língua para língua, de acordo com o modo e visão de mundo diante da observação da realidade.
Assim, condicionada pela língua, nossa concepção de mundo é "apenas uma das muitas possíveis". A fonte de maior heresia seria, então, não reconhecer os limites de nossa visão de mundo, mutável e conflituosa, ignorando as contradições que lhe são inerentes, com a adoção "consensual" de uma única e parcial visão da floresta. Conforme alerta Luís Milanesi, o consenso rápido e o consenso duradouro são suspeitos.
De outro modo, para suprir os limites de uma equivocada leitura de mundo, é imperativo desconfiar de tudo. Além de simplesmente ordenar o caos informativo por meio de um rosário de técnicas, cumpre cultivar a dúvida e, sobretudo, desconfiar permanentemente da ordem, destruindo os "edifícios já construídos", revelando a força dos antagonismos em choque; eventuais males de origem que remetem ao mito fundador da Terra sem mal: “a verbiagem oca, inútil e vã, a retórica, ora técnica, ora pomposa, a erudição míope”, aparatos de saber fundados à custa de hierarquias e privilégios, ignorância e alienação, perpetuadas por quem decide o que convém saber. Neste mundo vasto mundo, "a visão da floresta é fundamental para compreender a folha"

Edson Santos Universidade de São Paulo/ biblioteconomia-
Outros artigos desse autor -http://www.ebah.com.br

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sábado, 19 de dezembro de 2009

Escrever, uma necessidade?



Verissimo espiona os dilemas do autor em novo livro
by Ronaldo Pelli em 18 de dezembro- Blog de O Livreiro

O que leva uma pessoa a escrever? Para o escritor Luis Fernando Verissimo, sempre foi uma questão de necessidade. Mas não uma necessidade banal, que escutamos dos poetas menores de “colocar para fora aquilo que se sente”. Não. Verissimo começou a escrever, já depois dos 30 anos, por dinheiro.
Até que, depois de décadas de editores a lhe cobrar textos, veio Os espiões, seu último livro. Após ter eleito sempre a folha em branco como sua musa, Verissimo resolveu escrever porque queria escrever. Sem encomenda, com o seu próprio tempo. Simples. E o assunto “por que alguém se senta em frente a esta mesma folha em branco e começa a preenchê-la?” permeou o seu novo trabalho.
Claro que a obra é uma homenagem/paródia aos livros de espionagem de John Le Carré. Mas essa é a primeira leitura. Na segunda olhada, para quem já acompanha o caminhar do autor gaúcho desde O jardim do diabo, já dá para perceber a reunião de várias de suas melhores qualidades: humor inteligente, referências, caricaturas de personagens, etc.
E a questão do por que escrever. É tão clara a sua necessidade de abordar o assunto que ele deixa transparecer a questão em alguns trechos. Como esse: “Todos nós merecíamos pertencer à irmandade dos que escrevem, só por querer”. Dá a entender que o narrador, um escritor frustrado que acaba como editor, não acredita na tese de escrever à toa, sem uma necessidade, sem um editor que o cobre ou uma conta a pagar.
Ou este: “O Amante Secreto (um personagem do livro) também sucumbira ao bendito ímpeto de escrever, o que fora a sua ruína. A estranha compulsão fizera mais uma vítima. O Professor Fortuna (outro personagem do livro) diz que em vez de endeusar escritores deveríamos louvar os milhões que resistem e não escrevem, e cuja grande contribuição à literatura universal são as folhas que deixam em branco”.
O escrever, este “bendito ímpeto”, é a “ruína” do Amante Secreto. Já o Professor, um desses personagens deliciosos que só o Verissimo é capaz de criar, que costuma ser do contra e que adora Nietzsche sem nunca ter lido nada do filósofo, sugere, à sua maneira niilista, homenagear a folha em branco. Como se dissesse que não é necessário escrever, não é necessário ler, não é necessário fazer nada. Exageros à parte, e de uma maneira torta, novamente estamos falando da musa do Verissimo: a folha em branco.
Os espiões mostra, ao fim, que às vezes a tentação de escrever é maior que a capacidade criativa dos escritores.

Título/Imagem desta postagem-sueliaduan

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Aos primeiros acordes



Dançar sempre foi o meu forte nunca imaginei que pudesse, naquela noite tranqüila, vir à tona algo a tanto adormecido Não, não comigo que sempre deslizei pela pista alheia a tudo ao meu redor e feliz com meu parceiro de anos e anos. Um bailarino de primeira.
Bom, talvez aquela noite fosse à reservada para mim, como dizem os místicos, para viver o que de antemão já estava previsto.
A verdade é que eu não acredito nessas coisas, não. Mas depois dessa noite tornou-se impossível viver sem uma ponta de mistério que fosse.
Como em todas as outras noites aprontei-me vagarosamente me detendo em cada detalhe procurando sentir cada gesto. Do simples passar do baton ao delicado amarrar da fivela da sandália um arrepio percorria todo meu corpo como se eu estivesse me preparando. Um quase ritual. E foi.
Aos primeiros acordes da orquestra, ele olhou-me profundamente nos olhos, puxou-me bruscamente pela cintura e senti seu braço forte me enlaçando. Depois seus lábios levemente encostaram-se ao meu rosto.
Algo adormecido em mim de há muito veio à tona.


sábado, 12 de dezembro de 2009

Diante do silêncio acusador....



Ressentir-se significa atribuir a um outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. “Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar”. Neste caso, o ressentido estabelece uma servidão inconsciente, se demite subjetivamente e não se implica como sujeito de desejo.
                             Maria Rita Kehl

A pessoa ressentida, ao se sentir ofendida, agredida, submetida ao outro, não se manifesta no ato, mas mantém a cena viva remoendo (ruminando) a ofensa repetitivamente. Maria Rita Kehl menciona que o “ressentido não é alguém incapaz de se esquecer ou de perdoar; é um que não quer se esquecer, ou que quer não se esquecer, não perdoar, não deixar barato o mal que o vitimou”.

É muito interessante o quanto a nossa psique nos rege e que não podemos garantir que uma criança se desenvolva subjetivamente de uma ou outra maneira mesmo que a mãe (pais) tome todas as medidas nos primeiros momentos da vida. O bebê, a criança e posteriormente o adulto podem ter vivido experiências subjetivas que o fizeram assimilar de maneira muito particular. Desta forma, muitas vezes quando fazemos o possível para proporcionar amor, apoio, ajudar psicológica, financeira e emocionalmente ou de qualquer outra natureza pensando estar fazendo o melhor ao outro, na experiência de quem recebe tudo isso pode ser assimilado não com gratidão, mas sim, como uma dívida que deve ser paga. Cada ajuda adicional no decorrer da vida o faz sentir pior e mais endividado (mais empobrecido). É como se cada ato de afeto e ajuda faça com que aquele que recebe fique mais pobre, desta forma ao invés de demonstrar espontaneamente a gratidão, este se volta contra aquele que oferece algo com muita violência.
É muito difícil lidar com o ressentimento do outro....
Todos nós ainda vamos nos sentir culpados diante do silêncio acusador dos ressentidos que nos rondam.
by Carlos Alberto Alves e Silva
http://www.fashionbubbles.com/2009/vitimas-do-proprio-mal-ressentimento/
Título do texto: Sueli aduan

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pelo departamento de Psicologia Clínica da PUC/SP e clinica, desde 1981, em consultório particular. É conferencista, ensaísta e poeta. Escreve artigos sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão e psicanálise para a imprensa. É autora de diversas obras, entre elas, Processos primários e Sobre ética e psicanálise.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

ENTÃO, TEMOS MEDO DE QUÊ?



Pintura  Sr. do Vale

De nosso corpo, respondia Lacan. Esse medo de si mesmo se chama angústia. Os outros registros do medo se articulam aí, ou procede daí. O que é o corpo? Em francês, pelo menos, não se diz "eu sou", mas sim "eu tenho" um corpo. O corpo é um haver, uma posse que também nos possui; é algo de que gozamos - entendam gozo no seu sentido jurídico. O gozo que é gozo do corpo é aquilo que está além do prazer, que funciona como barreira. O gozo é aquilo que se pode experienciar, por exemplo, na dor. Ora, as proteções funcionam e, na maioria das vezes, nos põem ao abrigo de experienciar essa dimensão de nosso corpo. O corpo é um haver que "se introduz na economia de nosso gozo pela imagem do corpo". O estádio do espelho é paradigmático. A criança se reconhece numa imagem que lhe dá sua unidade antes mesmo que seu amadurecimento neurofisiológico o permitisse. Para que ela assuma essa imagem, para que se identifique, é necessária uma mediação: a mediação da mãe, desse Outro que a carrega nos braços, e que nomeia essa forma que a criança encontra. No olhar da mãe e em suas palavras, a criança capta que representa alguma coisa para seu desejo, mesmo assim, sem saber o quê. A mediação simbólica do Outro me confere a imagem do meu corpo, e meu eu se constitui a partir daí como um alter ego. Assim é o corpo da linguagem que faz o corpo do espelho, conferindo-o ao sujeito. A linguagem - isto é, o saber - afeta o corpo.

by Carla Wanessa-
Jacques-Marie-Émile Lacan-Paris, (13 de abril de 1901 - 9 de setembro de 1981).
Psicanalista-

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

da série tenho um amigo que disse que eu:



Deveria ser mais organizada, que ele já se cansou de atender meus telefonemas e é sempre a mesma ladainha:
_ desculpe-me querido, tinha certeza que era o do teatro. É, mas o que ele não sabe, nem imagina, é que eu fico bastante chateada com as respostas que me dá:
_ por que você não deixa uma agendinha ao lado do telefone? Assim não vai errar mais. Como se eu não tivesse uma agendinha E qual o problema em errar? Também já decidi, quando acontecer novamente, e sei que vai acontecer, vou é mudar minha voz.
Já que estudo pra ser ator mesmo, não custa treinar. Vai ser divertido e ele não vai nem perceber, tenho certeza. Pois quando decido fazer uma coisa, coloco minha alma.
Tenho um amigo que disse que eu não devia ficar brincando com essas coisas. Fingir ser uma coisa que não sou, tentei explicar a ele que não se trata de fingir, que teatro não é isso não, mas ele é cabeça-dura e ainda argumentou:
_Que serventia tem tudo isso? Olha, fiquei mais chateada com ele do que com o outro, por que errar acho que todo mundo erra mesmo, mas querer que tudo tenha uma serventia nesse mundão, ah! Aí é que não. Na hora em que ele me falou isso fiz umas caretas, botei a língua pra fora, estiquei os cabelos, pulei numa perna só, que era pra ver se ele ria. Dito e feito, eu sou mesmo engraçada. Ele riu, riu, que até perdeu o fôlego.
A desforra chegou à horinha e perguntei:
_Que serventia tem esse seu riso todo? Nunca mais vi esse amigo. Foi até bom, não era mesmo meu amigo. Amigo que é amigo acredita no trabalho da gente.
Tenho um amigo que disse que essa coisa de trabalho é complicada. Não entendi onde está a complicação, e como sou muito perguntadeira, fui logo dizendo:
_Como assim complicado?
_Pois é! A gente não vê a hora que o dia termine, e ainda completou: trabalhar é muito chato. Chato é esse meu amigo.
Já um outro amigo, desses que nem vê a hora passar, que quando o dia termina adentra a noite a trabalhar, disse que eu não sou só perguntadeira, não. Sou também trabalhadeira que errando aqui, acertando ali, descobri o prazer que dá o muito fazer.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Observância



Observo a xícara.
Que sinto ao observá-la?
Uma xícara.
Apenas uma xícara,
Apenas um quadro,
Apenas uma fresta,
Apenas esse som melancólico.
Apenas o existir.
O tempo parado nesse quarto.
A solidão do ser.
A certeza de ser só.
Só com o sentido das palavras.
Explicação do mundo.
E a xícara?
Branca, porcelana.
O bem - estar do chá.
A dor do pensamento.
Não cabe na xícara, não sai pela fresta.
Apenas uma xícara.
E toda solidão do mundo

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

"Olhos de cão azul"


Olhos de cão azul


Gabriel García Márquez

Então olhou para mim. Pensava que olhava para mim pela primeira vez. Mas então, quando se virou por trás do abajur, e eu continuava sentindo sobre o ombro, nas minhas costas, seu escorregadio e oleoso olhar, compreendi que era eu quem a olhava pela primeira vez. Acendi um cigarro. Traguei a fumaça áspera e forte, antes de fazer girar a cadeira, equilibrando-a sobre uma das pernas posteriores. Depois disso a vi ali, como havia estado todas as noites, de pé junto ao abajur, me olhando. Durante breves minutos não fizemos nada mais que isto: olhar-nos. Eu, olhando-a da cadeira, equilibrando-me numa das pernas traseiras. Ela, em pé, me olhando, com uma das mãos, comprida e quieta, sobre o abajur. Via as pálpebras iluminadas como todas as noites. Foi então que lembrei o de sempre, quando lhe disse: "Olhos de cão azul". Ela me disse, sem tirar a mão do abajur: "Isso. Já não o esqueceremos nunca". Saiu da órbita suspirando: "Olhos de cão azul. Escrevi isso por todas as partes”. Vi-a caminhar em direção à cômoda. Vi-a aparecer na lua circular do espelho, olhando-me agora no final duma ida e volta de luz matemática. Vi-a continuar me olhando com seus grandes olhos de cinza acesa: olhando-me enquanto abria uma caixinha revestida de nácar rosado. Vi-a passar pó-de-arroz no nariz. Quando acabou de fazer isso, fechou a caixinha e voltou a ficar em pé e andou novamente em direção ao abajur, dizendo: "Temo que alguém sonhe com este quarto e mexa nas minhas coisas"; e estendeu sobre a chama a mão comprida e trêmula, a mesma que estivera esquentando antes de sentar-se em frente ao espelho. E me disse: "Você não sente o frio". E eu lhe disse: "Às vezes". ..

Gabriel José Garcia Márquez, a quem os amigos chamam de Gabo, nasceu às 9 horas da manhã do dia 6 de março de 1928 na aldeia de Aracataca na Colômbia, não muito distante de Barranquilla.
Alguns de seus textos foram adaptados para o cinema, como "Eréndira", de 1983, estrelado por Cláudia Ohana e dirigido por Ruy Guerra, e "O Amor nos Tempos do Cólera", de 2007, dirigido pelo inglês Mike Newell, e com a participação de Fernanda Montenegro.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Aproveitar o Tempo


Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Mílton...

Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Milton ou ser Virgílio!
..................
Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?! 
 ..............

Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterônimo de Fernando Pessoa

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

"Diotima: do corpo do livro ao corpo do mundo"


E dobrando a esquina avistou a casa. Com o coração apertado tocou a campainha. O homem que abriu a porta tinha um olhar cansado quase não o reconheceu. Olharam-se sem nada falar.
Diotima recuperando-se entrou na ampla sala. As dores do passado abrindo caminho: os ciúmes da irmã, a mágoa pelo pai que desde cedo dera lhe a enxada como sina traçada. Tudo ganhando relevo. Tomando conta do espaço numa explosão de culpa, ódio, rancor.
E novamente a voz de Tarsila e suas estórias cheias de significado transformando tudo em volta.
Diotima já não era mais aquela mulher empertigada. Agora percebia o mundo. Compreendia o coração dos homens.
E tudo lhe faltava: o irmão morto, o vaso com tulipas, a cerca pro boi, tia Jacobina, a vida da fazenda.
Experiência singular em que Diotima abraçando o corpo do pai descobre o corpo do livro.

FIM

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

"Diotima: do corpo do livro ao corpo do mundo"




capítulo 2
(em 3 capitulos)
.....transformou.
Eram tardes longas e deliciosas em que ambas sentavam confortavelmente olhando lá longe as folhas douradas das árvores caídas por todo o chão.
Tarsila lia com sua voz rouca.  Tinha um jeito de balançar a cabeça em uma outra parte do livro como que emocionada pela narrativa.
Às vezes os olhos enchiam-se de lágrimas tamanha emoção. Nessas horas, procurava os olhos de Diotima como um pedido de socorro, como alguém que pede um favor ou um copo d’água. Diotima empertigada na poltrona parecia feita de pedra.
Tarsila voltava rápido para a leitura. Não compreendia essa mulher tão amorosa. Mulher criada na roça, com a enxada na mão, só chorava quando não chovia e a lavoura ardendo na terra se perdia.
Essas imagens em sua mente. Por quê? Há tanto não pensava na irmã na sua morte repentina.
Morte sinistra, fora encontrada com o corpo todo comido pelos bichos, as folhas das macaúbas caídas sobre seu ventre disforme. Parecia um tapete de musgos e liquens.  Um convite à orgia, ao amor; o povo dizia ser coisa do tinhoso, do cão. A varanda,as leituras, aquela tarde triste quando os homens chegaram as coisas sendo carregadas no caminhão, primeiro a sopeira de tia Jacobina depois a cristaleira, os enfeites de mãe e tantos outros objetos.
Tarsila parando a leitura bruscamente olhando nos olhos do pai de cócoras no canto da sala, que feito criança, soluçara ali mesmo. Mãe só xingando. Nunca viu mãe tão brava.
Porque meu Deus? Essas lembranças justo no momento que estava decidida. Só podia ser do coisa ruim. Que fosse.
A faca em suas mãos luzindo o desejo de encravá-la de ver o sangue quente escorrendo formando uma poça e o  cheiro forte feito a boi morto. Angustia de mulher valente resgatando coisas que se perderam diluídas no tempo.
Diotima acelerou mais os passos com medo que todas essas imagens a detivessem.
E dobrando a esquina...

terça-feira, 17 de novembro de 2009

"Diotima: do corpo do livro ao corpo do mundo"


   Capítulo 1
 (em 3 capítulos)

Diotima atravessara a rua com passos largos, mãos trêmulas, olhos atentos e movendo-se de um lado a outro com uma respiração ofegante.
A rua em torno era ensurdecedora. Claridade e calorão.Tudo conspirava, a loja da esquina com seu cheiro de incenso, a velha na calçada pondo os óculos.
Por um momento teve a sensação que era observada.
Na verdade Diotima nunca se acostumara com a cidade nem  com corre-corre das pessoas, o barulho, o ar sufocante.
Saia pouco. Às vezes era necessário. E também tinha os biscoitos que Jorge deixava pronto, às terças-feiras, pequenos prazeres que ainda se permitia.
O resto do tempo ficava mesmo em seu quarto. Tempo de leitura e solidão.
O quarto era iluminado, branco, paredes caiadas. Uma cama, criado-mudo o guarda-roupas, os livros. Era o que tinha e lhe bastava.
No começo quando chegou sua estranheza tinha explicação. Mundo dos símbolos e das palavras. Diotima não sabia ler. Mas agora passado tanto tempo. Como podia? Aprendeu a ler. Viu seu crescimento passo a passo, a mudança a alegria ao perceber o sentido das coisas,e, até compreendeu melhor as lágrimas de Tarsila.
A velha firmou mais o olhar tirou os óculos voltou a pô-los. Diotima tremeu pensou em desistir em voltar. Afundar-se em sua poltrona verde oliva cobrir-se com a manta tecida pela mãe, há tanto tempo, com tanto carinho.
A lembrança dessa imagem misturada à voz doce da mãe encorajou-a a seguir.
Não sem dor, mas seguir. O problema está em escolher. Sempre a escolha. Isto ou aquilo; vermelho ou azul, rosas ou margaridas.
Que importa nada lhe faltava. Gostava de viver só. Nem mesmo a morte do irmão ainda pequeno; o pai cuidando do gado sozinho consertando cerca pro boi não fugir; cortando lenha que mãe pedia mesmo sem precisão. Homem paciencioso pai.  E tia Jacobina andando a esmo pelo vale; a casa cercada de varandas e um grande céu por cima.
Nada disso afetava Diotima em sua nova vida na cidade.
Lembrou-se de Tarsila, irmã mais nova, que comprara um vaso novo com tulipas para enfeitar a varanda na esperança que tudo se transformasse. E transformou...

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

da série: tenho uma amigo que disse que eu:

Acredito que as pessoas pensam como eu penso e exatamente por isso estou sempre dando com os burros nagua. Na hora não me veio nada na cabeça em resposta a esse equívoco dele. Não em relação aos burros não, imagine. Sei que não é nada fácil, lembro-me de meu avô chegando todo molhado e reclamando:
-malditos burros!
É que agora, aqui, na quietude de tudo me veio à constatação de que ele é quem vive dando murro em ponta de faca e nem falo isso pelo fato dele ser açougueiro não.
É que sente um prazer, velado, em cortar a alegria da gente, vai ver de tanto sentir cheiro de sangue, ver bicho morto foi ficando assim. Coitado.
E se tem uma coisa que aprendi com meu velho avô é que o mal se corta pela raiz.
Ah! Se na hora a resposta estivesse, fresquinha, dentro de mim teria dito em alto e bom som:
_é claro que cada pensar é um pensar, meu amigo, cada cabeça uma sentença,  mas convenhamos em se tratando do viver estamos todos querendo o mesmo. FELICIDADE!, mas é sempre assim, desgraça vem à cavalo, e rapidamente fiquei muda.
Já um outro amigo, destes que estão sempre querendo pôr lenha na fogueira, me veio com essa:
- eu se fosse você, parava com a mania de acreditar nas boas intenções das pessoas, que de boas intenções o inferno está cheio. Esse eu consegui responder na hora:
_ ainda bem que você é você e eu sou eu, almas distintíssimas, meu caro.
Não acredito, ele ainda se deu o direito de ficar ofendido. O mundo está de cabeça pra baixo mesmo. Os maldosos se ofendem com uma facilidade.
Tenho um outro amigo. Bom, não é um amigo daqueles que a gente pode abraçar, dizer que ficou com  uma baita saudade, daqueles que nem precisamos falar nada. Só a presença já basta.
Não, não é desse tipo, mas ele está vivo naquelas páginas amareladas, no livro sobre o móvel ao lado da minha cama.
Em muitas noites me deito com ele, sinto sua presença, devagarzinho cochilo, ouço sua voz suave, sua fala penetrando lentamente em mim como num ritual orgíaco.
Esse meu amigo, belo amigo, “diz que tudo que existe são encontros e a capacidade da gente afetar e ser afetado por esse encontro. Se esses encontros aumentarem nossa potência de ação experimentamos a alegria; o contrário se esses encontros diminuírem nossa potência de ação experimentamos tristeza”
E eu lá quero ser triste. Antes só do que mal acompanhado.

domingo, 8 de novembro de 2009

Imagem

O olho que me olha
          
Olha com medo.
Olha,
entreolha,
reolha.
                                               
                                     O olho que me olha                                   
olha com desdém.
olha por olhar.
O olho que me olha
olha sem ver
olha sem perceber
Que sou eu quem olha.
Olhos que não veem

  Espelho de minha imagem.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Uma conversa puxa outra... Uma idéia....

Uma coisa chama outra já dizia  minha avó. E não é que ela estava mesmo certa. A coisa aconteceu assim mesmo, meio que por acaso, bom, não vamos começar com essa coisa de:
“O que tem que acontecer acontece”. Isso dá pano pra manga. Essa era outra coisa que minha avó, também, vivia falando pelos cantos da casa enquanto cuidava de tudo. E como cuidava. Não sei por que, mas hoje ela não me sai da cabeça. Vai ver é porque era uma pessoa generosa, cheia de boas idéias, semelhante a essa “moça” que conheci “aqui " e  feito minha avó, é pura generosidade.
O fruto desse carinho todo se concretizou “e ficou lindo"   agora é só cuidarmos, colocarmos nossas idéias, de outros...outros e muitos...
Sermos generosos... saudade da minha avó.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

A SIERGUÉI IESSIÊNIN

(é assim que se honra um poeta?)-

Você partiu, como se diz, para o outro mundo.
Vácuo. . .Você sobe, entremeado às estrelas.
Nem álcool, nem moedas.
Sóbrio. Vôo sem fundo.
Não, lessiênin, não posso fazer troça, -
Na boca uma lasca amarga não à mofa.
Olho - sangue nas mãos frouxas,
você sacode o invólucro dos ossos.
Sim, se você tivesse um patrono no posto (1)
Ganharia um conteúdo bem diverso:
todo dia uma quota de cem versos,
longos e lerdos,como Dorônin(2).
Remédio? Para mim, despautério:
mais cedo ainda você estaria nessa corda.
Melhor morrer de vodca que de tédio!
Não revelam as razões desse impulso
nem o nó, nem a navalha aberta.
Pare basta! Você perdeu o senso? -
Deixar que a cal morta lhe cubra o rosto?
Você, com todo esse talento para o impossível; hábil como poucos.
Por quê? Para quê?
Perplexidade.
- É o vinho!
- a crítica esbraveja.
Tese: refratário à sociedade.
Corolário: muito vinho e cerveja.
Sim, se você trocasse a boêmia pela classe;
A classe agiria em você, e lhe daria um norte.
E a classe por acaso mata a sede com xarope?
Ela sabe beber
..............................................................
...................
Agora para sempre tua boca está cerrada.
Difícil e inútil excogitar enigmas.
O povo, o inventa-línguas,
perdeu o canoro contramestre de noitadas.
E levam versos velhos ao velório,
Sucata de extintas exéquias.
Rimas gastas empalam os despojos, -
é assim que se honra um poeta?
-Não te ergueram ainda um monumento -
onde o som do bronze ou o grave granito? -
E já vão empilhando no jazigo
dedicatórias e ex-votos: excremento.
Teu nome escorrido no muco,
..........................

Por enquanto há escória de sobra.
0 tempo é escasso -
mãos à obra.
Primeiro é preciso transformar a vida,
para cantá-la -em seguida.
Os tempos estão duros para o artista:
Mas, dizei-me, anêmicos e anões,
os grandes, onde, em que ocasião,
escolheram uma estrada batida?
General da força humana-
Verbo - marche!

Que o tempo cuspa balas para trás,
e o vento no passado só desfaça
um maço de cabelos.
Para o júbilo o planeta está imaturo.
É preciso arrancar alegria ao futuro.
Nesta vida morrer não é difícil.
O difícil é a vida e seu ofício.


Vladimir Maiakovski- Tradução de Haroldo de Campos

1. Alusão à revista Na Postu (De Sentinela), órgão da RAPP (Associação Russa dos Escritores Proletários), cujos colaboradores se mostravam muito zelosos em atacar os escritores que lhes pareciam transgredir a moral proletária.

2. Referências ao poeta soviético I.I. Dorônin .

domingo, 1 de novembro de 2009

Travessia

Quando!fêz-se noite em meu viver/vou fechar o meu pranto...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

De todas as coisas...

De todas as coisas que eu tive as que mais me valeram,das que mais sinto falta, são as coisas que não se pode tocar.

São as coisas que não estão ao alcance de nossas mãos.
São as coisas que não fazem parte do mundo da matéria.

(O cheiro do Ralo-Lourenço Mutarelli)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

"MUNDO E CORPO" sujeito e objeto


Quando minha mão direita toca a esquerda, sinto-a como uma coisa física, mas no mesmo instante, se eu quiser, um acontecimento extraordinário se produz: eis que minha mão esquerda também se põe a sentir a mão direita. Nele (meu corpo) e por ele não há somente um relacionamento em sentido único daquele que sente com aquilo que ele sente: ocorre uma reviravolta na relação, a mão tocada torna-se tocante, obrigando-me a dizer que o tato está espalhado por todo o corpo, que o corpo é ‘coisa sensitiva’, sujeito e objeto. A mão direita é sujeito? A esquerda é objeto? Ou ambas sujeito e objeto? Parece que tais questões deixam de ter importância quando nos preocupamos com a experiência sensível ou com a busca do ser bruto. A experiência tátil, o tocar e o ser tocado, bem como a experiência visível, ver e ser visto, emergem de um mesmo tipo de ser. O corpo pertence às duas ordens do sujeito e do objeto ao mesmo tempo. Tal relação pode ser transposta para a relação corpo e mundo. O corpo também pertence à ordem das coisas assim como as coisas também pertencem à ordem do corpo. É também no plano do sensível que estará a possibilidade de percepção do outro. O outro habita um mesmo campo sensível, embora não habite a mesma consciência. Mas a experiência sensível é uma espécie de entendimento anterior à qualquer clivagem sujeito-objeto ou consciência-mundo.
Mundo e corpo são simultaneamente sujeito e objeto. (M.Ponty)
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Maurice Merleau-Ponty escritor e filósofo líder do pensamento fenomenológico na França, nasceu em 14 de março de 1908, em Rochefort, e faleceu em 4 de maio de 1961, em Paris. Estudou na Ecóle Normale Supérieure em Paris, graduando-se em filosofia em 1931.
Em 1955 publicou"As Aventuras da Dialética".

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

da série : tenho um amigo que disse que eu:

Estou totalmente errada quando converso com qualquer um, que eu só devia conversar com os amigos mesmo, ou ainda, com aqueles que acabo conhecendo por intermédio dos próprios amigos, numa festa, num jantar, num teatro, saber mesmo quem é a pessoa, não assim , qualquer um.
O que será ele quis dizer com qualquer um? O problema, claro, não está no um. Um somos todos, a questão é o qualquer. Esse cara desconhece o peso que as palavras possuem, senão não seria tão depreciativo.
Será que ele nunca pensou que uma grande amizade pode nascer assim, desses encontros casuais, não é difícil isso acontecer não.
tenho um amigo que disse que o grande amor da sua vida surgiu assim inesperadamente. Numa noite, quando andava à toa no calçadão na espera que o sono chegasse viu um vulto que se aproximava em sua direção, a princípio ficou assustado, mas continuou andando normalmente, ao passar pela pessoa não resistiu puxou uma conversa. Esse meu amigo é tagarela mesmo, feito eu. Acho que vou começar a andar no calçadão, vai que numa noite dessas...
tenho um amigo que disse que a gente pode machucar, provocar dor em alguém só com palavras. Esse meu amigo é todo explicadinho, foi logo completando:
_ não aquela dor de quem já levou tapa, chinelada, cintada, e que deixam vergões vermelhos, ardentes. A dor da palavra não deixa marcas visíveis, fica tudo na mente latejando... latejando, dura quase pra sempre. Esse meu amigo sabe das coisas.
Tenho um outro amigo, grande amigo, esse sim, sabedor da força das palavras. Ele disse que adora me ver passar batom, que faço biquinho, e parece que estou a falar, falar vermelho, falar perfumado...
disse isso sorrindo, com um olhar cheio de poder, poder até das palavras não ditas, mas ainda bem que as escutei ...

terça-feira, 20 de outubro de 2009

...como a alma de um homem

"Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente. Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens."
João Guimarães Rosa

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

É PRECISO FUGIR CONCENTRICAMENTE"

Não basta fugir.
É preciso fugir no bom sentido: fugir do tédio, da fome, da guerra.
Não se deve fugir excentricamente, é preciso fugir concentricamente.
Fugir o mundo para poder reinventá-lo um dia quem sabe maior, mais verdadeiro, mais justo, mais essencial.

Charles Ferdinand Ramuz nasceu e se formou na Suíça, chegou a dar aulas na Alemanha, viveu em Paris durante 11 anos e retornou à Suíça para viver uma vida recolhida e dedicada à literatura. A imagem de Ramuz ilustra a nota de 200 francos suíços, em circulação.

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

"O TEMPO E O CÃO"



Lançamento do livro "O tempo e o cão- Maria Rita Kehl-abril/2009

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Você tem medo de quê?

Vou direto ao ponto: estive em Paris. Está dito e precisava ser dito, logo verão por quê. Mas é difícil escapar à impressão de pedantismo ou de exibicionismo, ao dizer isso. Culpa da nossa velha francofilia (já um tanto fora de moda). Ou do complexo de eternos colonizados diante dos países de Primeiro Mundo. Alguns significantes, como Nova York ou Paris, produzem fascínio instantâneo. Se eu disser “fui a Paris”, o interlocutor responderá sempre: “Que luxo!” E se contar “fui assaltada em Paris”, ou “fui atropelada em Paris”, é bem provável que escute: “Mas que luxo, ser assaltada (atropelada) em Paris!”
O pior é que é verdade. É um verdadeiro luxo, Paris. Não por causa do Louvre, da Place Vendôme ou dos ChampsÉlysées. Nem pelas mercadorias todas, lindas, chiques, caras, que nem penso em trazer para casa. Meu luxo é andar nas ruas, a qualquer hora da noite ou do dia, sozinha ou acompanhada, a pé, de ônibus ou de metrô (nunca de táxi) e não sentir medo de nada. Melhor: de ninguém. Meu luxo é enfrentar sem medo o corpo-a-corpo com a cidade, com a multidão.
O artigo de luxo que eu traria de Paris para a vida no Brasil, se eu pudesse – artigo que não se globalizou, ao contrário, a cada dia fica mais raro e caro –, seria este. O luxo de viver sem medo. Sem medo de quê? De doenças? Da velhice? Da morte, da solidão? Não, esses medos fazem parte da condição humana. Pertencemos a esta espécie desnaturada, a única que sabe de antemão que o coroamento da vida consiste na decadência física, na perda progressiva dos companheiros de geração e, para arrematar tudo, na morte. Do medo desse previsível grand finale não se escapa.
O luxo de viver sem medo a que me refiro é bem outro. O de circular na cidade sem temer o semelhante, sem que o fantasma de um encontro violento esteja sempre presente. Não escrevi “viver numa sociedade sem violência”, já que a violência é parte integrante da vida social. Basta que a expectativa da violência não predomine sobre todas as outras. Que a preocupação com a “segurança” (que no Brasil de hoje se traduz nas mais variadas formas de isolamento) não seja o critério principal para definir a qualidade da vida urbana.
Não vale dizer que fora do socialismo esse problema não tem solução. Há mais conformismo do que parece em apostar todas as fichas da política na utopia. Enquanto a sociedade ideal não vem, estaremos condenados a viver tão mal como vivemos todos por aqui? Temos de nos conformar com a sociabilidade do medo?....
Sei lá como os franceses conseguiram preservar seu raro luxo urbano. Talvez o valor do espaço público, entre eles, não tenha sido superado pelo dos privilégios privados. Talvez a lei se proponha, de fato, a valer para todos. Pode ser que a Justiça funcione melhor. E que a sociedade não abra mão da aposta nos direitos. Pode ser que a violência necessária se exerça, prioritariamente, no campo da política, e não da criminalidade.
Se for assim, acabo de mudar de idéia. Viver sem medo não é, não pode ser um luxo. É básico; é o grau zero da vida em sociedade. Viver com medo é que é uma grande humilhação.

Maria Rita Kehl é doutora em psicanálise pelo departamento de Psicologia Clínica da PUC/SP e clinica, desde 1981, em consultório particular. É conferencista, ensaísta e poeta. Escreve artigos sobre cultura, comportamento, literatura, cinema, televisão e psicanálise para a imprensa. É autora de diversas obras, entre elas, Processos primários e Sobre ética e psicanálise.

sexta-feira, 9 de outubro de 2009

uma batida....só

eu descia a então, Rua XV de Novembro na altura da, não mais existente, “Lojas Singer Máquinas de Costura -Novas e Semi-novas”, ia em minha caminhada rotineira com destino certo e enfadonho: o colégio.
Com o pensamento longe, feito a pássaro livre em seu vôo matinal, eu seguia desatenta a tudo, na distância encantatória entre as coisas e o homem.
Quando uma batida forte, alucinante vinda da loja de discos...alterou os meus passos, acelerou meu coração, e, como disse o poeta: a anatomia ficou louca, tornei-me toda coração.
Inesquecível manhã, semáforo fechado, vermelho também dentro de mim, apenas uma batida e, toda uma nova harmonia, momento epifânico esse, quando ouvi pela primeira vez:
“ HELP”

Help....Help

domingo, 4 de outubro de 2009

da série: "tenho um amigo que disse que eu":

Não devia andar da maneira como ando na rua, que ontem ele me viu na avenida próximo aos Bancos, mexeu comigo e eu nem olhei, mas como posso ouvir alguém me chamar naquele inferno que é a avenida, ele é que não devia ficar chamando as pessoas, vai que a pessoa se distraia ouvindo o próprio nome, pronto, pode até acontecer um acidente.
Tenho um outro amigo que disse que eu sou assim mesmo, parece que vivo no mundo da lua. Ele disse que é louco pra saber o que eu penso quando estou andando pelas avenidas.
Não sei, respondi. Depende muito, mas acredito que é o que todo mundo pensa enquanto caminha na avenida, com todos esses carros pra lá e pra cá, sempre um prédio em construção, a gente sendo obrigado a desviar o tempo todo, quase andar na rua mesmo, tamanha confusão de cimento, pedras e pás.
Mas ele insistiu: Como assim o que todo mundo pensa? Nos depósitos a fazer, nos saques, nas contas a pagar ou nos carros bonitos que passam?
Claro que não respondi:
O obvio, não é?
E se um carro nos atropela, ou ainda se lá do alto daquele prédio caí uma pedra na nossa cabeça. Pronto.
Tudo que sonhamos acaba numa fração de segundos, as discussões que tivemos no dia anterior, a festa que programamos ir ao fim de semana, o abraço que recusamos, só pra darmos uma de durão... Ele arregalou uns olhos que eu nunca tinha visto, e gaguejando disse:
Você não é normal. O que será que ele quis dizer com:
Você não é normal? Eu acho que ele não conhece o prazer que dá pensar , nessas coisas simples. Ele é uma máquina e, com esses olhos arregalados então, parece mesmo uma máquina. Vou desligar esse cara.
Mas, é claro, que todas as pessoas pensam sobre isso, não necessariamente na avenida, indo de um Banco a outro, mas em algum momento da vida todo mundo já pensou:
E se eu morro agora?
Tenho uma amiga, que disse que eu sou luz, que todos somos luz, espíritos em evolução, e que não devemos ficar pensando nessas bobagens, que faz muito mal pra saúde.
O que será que ela quis dizer com:
_Faz muito mal à saúde.
Coitado do Platão, e daqueles caras que pensaram....pensaram, claro que não em pedras caindo, ainda que se tratasse de caverna, mas na escuridão do não pensar, da sombra da casa, da luz que ofusca, na ignorância de se tentar ser igual.
Tenho um amigo, grande amigo, desses que falam com a delicadeza do muito pensar, ele disse que devemos, sim, andar nas avenidas como quem enxerga girassóis, como quem vive no mundo da lua, mesmo que um carro...uma pedra...tudo é mesmo numa fração de segundos...um pensar.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Cheguei ao limite...

Cheguei ao limite de minhas capacidades intelectuais. Percebo que poderei perdê-las a qualquer momento. Além disso, perdi muita gente querida, amigos e parentes. Eu, que tive uma atividade de reflexão, estudo e ensino, rodeado de pessoas que amava, me vejo cada vez mais solitário. Quando vivemos uma crise assim, a sabedoria vai embora e perdemos o rumo de nossas reflexões.
De que valeram os 31 livros que publiquei? O que sobra de tudo o que a gente aprendeu, num momento-limite? Saí à procura de um tipo de sabedoria que me ajudasse a suportar a velhice e compreendê-la com serenidade. Só encontro consolo quando recito baixinho, para mim mesmo, os poemas que sei de cor.
A repetição é uma forma arcaica de conhecimento, mas eficaz, quando se vive num momento de domínio da tecnologia e do consumismo.
É repetindo esses poemas que aprendo coisas importantes sobre mim próprio. (Harold Bloom)

Harold Bloom é professor titular de Ciências Humanas, na Universidade de Yale, e já ocupou cátedra na Universidade de Harvard. Escreveu mais de 25 livros, entre os quais Hamlet: Poema Ilimitado, Gênio, Como e Por Que Ler, Shakespeare: A Invenção do Humano, O Cânone Ocidental, publicados pela Objetiva, além de O Livro de J e A Ansiedade da Influência

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

TOC TOC- 2008- TEATRO- em São Paulo

Os diferentes significados de uma palavra - por Riba Carlovich personagem
Desempregado fiquei com o cu na mão. Como nunca fui um lambe-cu e nem nasci com o cu virado pra lua, sabia que arrumar um novo emprego ia ser um cu. E nem estou falando desses empregos onde se pode encher o cu de dinheiro sem ter que trabalhar até o cu fazer bico. Sem ter outra opção, resolvi bancar o cu de ferro: recortei alguns anuncios do jornal, saí de casa no cu da madrugada e fui à luta. Na primeira empresa que visitei, o trabalho era semi-escravo e fui obrigado a tirar o cu da reta. Na segunda, o trabalho era totalmente escravo, e tive que tirar o cu da seringa. A terceira empresa ficava no cu do mundo, mas a vaga era de fxineiro e não havia como ser recusado. Mesmo assim fui para a entrevista tentando não contar com o ovo no cu da galinha. De saída o entrevistador perguntou se eu não me importava em trabalhar armado. " faxineiro armado ", perguntei - O que tem a ver o cu com as calças ? E sem esperar pela resposta fui embora rapidinho. Afinal de contas, quem tem cu tem medo. Agora só restava um anuncio. O problema é que a empresa ficava no cu do Judas. A viagem durou duas horas e já foi um cu pra conferir. Quando cheguei descobri que se tratava de uma produtora de filmes pornográficos. Fui recebido, e sem a menos cerimônia perguntaram se eu já tinha dado o cu. Respondi que não, mas que podia aprender. Não teve jeito. A verdade é que hoje em dia até pra tomar no cu é preciso ter experiência. E só quem não entende isso é a minha namorada, que vive me chamando de cuzão e acha que eu não arrumo emprego porque fico fazendo cu doce. Riba Carlovich.

TEATRO- (2008)- (Sampa)
TOC TOC aborda de maneira sagaz e com humor ácido uma doença que atinge parte da população mundial e sua trama se passa na sala de espera do consultório do Doutor Stern, famoso pelo sua tratamento de pacientes com TOC e por seus pacientes nunca necessitarem de uma segunda sessão.
Lá, seis pacientes se encontram, com hora marcada para uma consulta: Branca (Márcia Cabrita) tem mania de limpeza, Maria (Ângela Barros), religiosa, acha sempre que sempre esqueceu tudo aberto, Lili (Flávia Garrafa), tem o hábito de repetição, Bob (Sérgio Guizé) é fanático por simetria, Vicente (Marat Descartes) não consegue parar de fazer contas e Fred (Riba Carlovich) sofre de uma síndrome que o faz dizer palavras obscenas constantemente. Carô Parra interpreta a assistente do médico.
Dr. Stern se atrasa excessivamente devido a alguns imprevistos, levando os pacientes a se unirem numa terapia em grupo, que rende boas tiradas. A história é permeada de humor inteligente e a platéia consegue soltar grandes gargalhadas sem apelação.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Um tempo e tanto... Belchior

..desafinada..rindo...

Fui (sou) apaixonadíssima por suas músicas, os amigos dessa época, me criticavam, pessoal da Sociologia Política, éramos todos envolvidíssimos (hum!) (uma época e tanto), mas eu sempre me interessei por tudo, lia tudo que cai na mão, ouvia tudo também.
Lembro-me quando fomos ao apto de um amigo, o Renato, a idéia era morarmos todos juntos. E ali, no meio da sala, aquela figura incrível do Renato, tocando flauta "Mulheres de Atenas", a idéia vingou, um tempo bom, (nem tanto)....., ouvíamos Chico, Gil, Milton, Caetano... , mas só eu, Belchior.
Ficavam putos comigo, nunca liguei. Cantava junto, alto, desafinado e rindo.
E, só agora à noite ouvi, rapidamente, num jornal da TV sobre o desaparecimento. Chorei. Belchior desaparecido, triste... muito triste.

Desaparecimento era coisa daquela época

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Bodisattva- uma busca constante



Bodisattva é um termo do budismo que designa seres de sabedoria elevada, que seguem uma prática espiritual que visa a remover obstáculos e beneficiar todos os demais seres. A expressão significa, em tradução literal do sânscrito, "ser (sattva) de sabedoria (bodhi)".

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Repetidas imagens

lavar o olhar
fotografar idéias, imagens repetidas
intersecção dos planos
lusco-fusco das indecisões
sóis,
girassóis,
bois.

difere
o homem
difere
a vida

sóis,
girassóis,
bois.

Sussurro
trajetória efêmera
nau perdida

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

A POESIA E O MITO DE CURA

Muitas vezes ficamos perplexos diante do que nos acontece na vida. Estamos sempre à pro-cura disto e daquilo e até, essencialmente, de nós mesmos. O que nos move na pro-cura é a Cura. Cura, do latim, assinala o Cuidado.
A Cura impulsiona todo nosso agir. Agir se diz em grego poiein, de onde nos vem poiesis, a essência do agir, a poesia. Poesia só é linguagem quando se torna verbo-ação-poiesis. Toda poesia nos advém a partir de Cura. É essa a fala do mito “Cura”.
A fala do mito é a linguagem do sagrado, por isso nele agem e falam deuses. O ser-humano (Entre-ser / Da-sein), a poesia e a linguagem pro-vêm da Cura. É o que nos narra o mito Cura. Ele nos foi assinalado por Higino, escravo egípcio de César Augusto, que morreu no ano 10 da nossa era. Eis a sua saga:
C U R A
"Certa vez, atravessando um rio, Cuidado (Cura) viu um pedaço de terra argilosa: cogitando, tomou um pedaço e começou a fingir/ficcionar (fingere). Enquanto deliberava sobre o que criara, interveio Júpiter [Zeus]. Cuidado (Cura) pediu que lhe desse espírito, o que ele fez de bom grado. Quando, porém, Cuidado (Cura) quis dar-lhe nome a partir de si mesmo, Júpiter proibiu e dita que lhe deve ser dado o seu nome. Enquanto Cuidado (Cura) e Júpiter disputavam sobre o nome, surgiu também a Terra (Tellus), querendo dar o seu nome, uma vez que havia fornecido um pedaço de seu corpo. Os disputantes tomaram Saturno [Cronos/Tempo] como árbitro. Este tomou a seguinte decisão aparentemente eqüitativa:
"Tu, Júpiter, por teres dado o espírito, deves receber na morte o espírito, e tu, Terra, por teres dado o corpo, deves receber o corpo”. Como, porém, foi Cuidado (Cura) quem primeiro o fingiu/ficcionou (finxit), deverá pertencer-lhe enquanto ele viver. Como, no entanto, sobre o nome há controvérsia, chame-se Homem, pois foi feito de "humus" (Terra)".

Manuel Antônio de Castro Leciona nos Cursos de Pós-Graduação e orienta Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado no Programa de Ciência da Literatura, na Área de Poética, da Faculdade de Letras da UFRJ

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

“amam o que verdadeiramente não há”

Sermão do mandato, pregado na Capela Real de Lisboa em 1645,
in Sermões, v. III, padre Antonio Vieira.

...os homens não amam aquilo que cuidam que amam. Por quê? Ou porque o que amam não é o que cuidam, ou porque amam o que verdadeiramente não há.
Quem estima vidros, cuidando que são diamantes, diamantes estima, e não vidros; quem ama defeitos, cuidando que são perfeições, perfeições ama, e não defeitos.
Cuidas que amais diamantes de firmeza, e amais vidros de fragilidade; cuidais que amais perfeições angélicas, e amais imperfeições humanas.
Logo os homens não amam o que cuidam.
Donde também se segue que amam o que verdadeiramente não há, porque amam as coisas, não como são, senão como as imaginam, e o que se imagina e não é, não o há no mundo.
do livro- "Desejo"-Companhia das Letras/ 1990-
organizador- Adauto Novaes-

domingo, 13 de setembro de 2009

O homem blindado

O homem blindado (...) não está aberto à visitação dos afetos ou da palavra. O blindado móvel em design estético é o homem moderno e ele é o ápice de um fechamento que o fecha inteiramente em si mesmo e sobre si mesmo e já não há espaço para a visitação do afeto ou par o jorro da língua, mas apenas para vivências autofabricadas e auto-afetadas”.

Certeza do Agora (2002)
Juliano Garcia Pessanha

"Eu não sou eu nem sou outro"

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

da série: "tenho um amigo que disse que eu":

não devia pensar que os homens sempre acham que as mulheres querem “dar” e que eles sempre querem “comer”, mas quem disse à ele que eu penso dessa forma, além do mais essa história de “comer” é relativa.
Não, não tem nada a ver com o Enstein, ainda que se possa pensar em termos de massa ,corpo, potência....
ele disse também que eu vejo problema em falar “relações sexuais”, que isso é típico das mulheres da minha idade, o que é que ele quis dizer com “mulheres da minha idade, será que ele pensa que há um padrão, simples assim, a idade determina tudo, seja você brasileira, angolana, nigeriana, canadense, paquistanesa.
Eu vou perder amizade com esse cara!
já a minha amiga disse que o falar “dar” e “comer” é próprio de um determinado grupo, feito nós metidas a cultas, intelectuais que discutem Foucault, Deleuze, Marx blá blá ,blá,....poesia, é toda moderna, contemporânea. Na juventude levantou bandeira de “caminhando e cantando a canção, somos todos... "
desconcordei na hora, nãnãninãna:
por quê, não se pode gostar do que dá prazer, alimenta, transforma?
E, além do mais, intelectual que se preza diz “trepar”. Ela quase enfartou diz que não consegue usar essa palavra: “trepar”, já tentou várias vezes.
Não, não, falar mesmo.
diz que sua boca começa a tremer sem controle, outro dia numa roda de amigos quase conseguiu, mas derrepente ruborizou e, não pensou duas vezes cascou um “trebien” e saiu a francesa, ninguém entendeu nada, agora anda pensando em falar “transar”, coisas de jovens, disse sorrindo pra mim.
desconcordei na hora, nãnañinãna, será que ela pensa que há um padrão....
já um amigo, raro amigo, diz que quando você encontra uma pessoa que olha no fundo de seus olhos e você olha fundo nos olhos dela e, isso transforma-se num só olhar para o mundo.
não precisa de nome algum, tudo já está nomeado de antemão.
Concordei na hora.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O que existe, os poetas fundam - Holderlin

Imagem F.Pessoa
A poesia está nas ruas, assim como nas coisas. A poesia está em gestos involuntários. Entre frases obscuras. Na parede das cozinhas. Nos anéis da seiva, no tenteio dos filhotes, nas asas que latejam. Nos resíduos dos amantes, misturados com estrelas.
A poesia está nos restos dos dias. Nos silêncios. Pouco percebida, a poesia verte sua secreta alquimia:
transfigurar os sinais de menos, as marcas da miséria, o rumor do que poderia ter sido. Resgatar a dança de esperanças perdidas, o frescor das bocas, as mãos em luta amante com a matéria do mundo. Água vital das origens e das utopias, e sede infinita, a poesia está em tudo.
No entanto, em paradoxo: a poesia é raríssima. Dificílima. Poucas, raras vezes a poesia emerge da natureza das palavras e transforma-se em poemas. Poucas, raras vezes os verbos e os nomes se fazem a carne absoluta da poesia, som e sentido em unidade mágica que recria o real, inventando-o.
Milhares e milhares de versos, para algumas palavras de poesia.
Muitas toneladas de matéria-prima-para alguns gramas de poema (Maiakovski).
Necessidade vital: por que tão escassa?
Por um lado, o mistério da emergência do poema, seu nascimento não redutível à consciência lógica nem à intencionalidade do sujeito que poeta.
Por outro lado, há poucos instantes possíveis para o florescimento da poesia na história cotidiana.
É preciso conviver com os poemas. Andar com eles. Sonhar com seus signos.
Ler, reler, não sei quantas vezes. Renascer com suas palavras vivas.
Expor-se à sua permanente revolução da linguagem.
Deixar-se seduzir por seus cantos.
Fazer travessias.

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Presente de Domingo- "Espetáculo Saudade"



minha reação foi de pura resistência, mas eu tinha bons motivos.
Domingo finalzinho da tarde, eu na rede, aquela malemolência, o arrastar das horas, o silêncio interrompido pelo canto das maritacas, a brisa...
E, derrepente o telefone, o convite. Como negar o convite de um amigo tão querido? Como negar a assistir o ensaio? O trabalho tão cuidadosamente elaborado
Do outro lado da linha, a voz firme, carinhosa, insistente.
_Vêm, vêm vá! Vai gostar!!!
Dá pra resistir? A mim não deu. Fui e, ainda bem.
O que vi ficou impregnado na minha pele, no meu corpo, na minha mente.
Movimentos limpos, em diálogo com o espaço onde a emoção se fez presente nos gestos de cada bailarino, num respeito extremo pela sua individualidade sem, no entanto, comprometer a busca do grupo.
Busca essa que extrapola a Saudade, (do Chile) e tema do espetáculo.
Ainda que o tempo vivido nesse país, pelos integrantes do grupo Família Cuerpo Brasil, tenha deixado suas marcas, e que danças como cueca, chilota entre outras sejam a tônica do trabalho, Danilo, Daia e Emerson, buscaram através da dança mostrar o elo existente entre todos os povos.
Da leitura de um poema de Pablo Neruda, na bela voz de Daia, a desconstrução dos movimentos por Emerson e a emotividade presente nos passos de Danilo, uma verdadeira viagem à arte da dança e ao conflito de se viver num mundo em que CORPO e FALA ainda não são bem compreendidos.
Agradeço a esses maravilhosos meninos, o convite, (com direito àquela linda cadeira de diretor de teatro), nem precisava sentava no chão mesmo, não sem antes tirar o chapéu.
Agradeço também ter conhecido (ainda que tão rapidamente) a Paola que com sua “fala” sobre dança, muito me encantou.
sueliaduan

"... sobre el cuerpo, se encuentra el estigma de los sucesos pasados, de él nacen los deseos, los desfallecimientos y los errores; em el se entrelazan y de pronto se expresan, pero también em él se desatan, entran em lucha se borran unos a otros y continúan su inagotable conflicto."
(Michel Foucault 1991)

domingo, 30 de agosto de 2009

a vida lhe dará poucos presentes- Lou A.Salomé

Ouse... ouse tudo! Não tenha necessidade de nada! Não tente adequar sua vida a modelos, nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém. Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.

Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la! Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer. Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso: algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!

Lou Andreas-Salomé (1861-1937) foi uma bela mulher que escandalizou a sociedade e quebrou regras morais. Teve vários amantes. Conheceu Freud, Jung, Nietzsche, entre outros grandes homens.
Mulher engajada e sensível tinha mito de sedutora.

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Transforma-se o amador na cousa amada,

Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada
Se nela está minha alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está ligada
Mas esta linda e pura semidéia,
que, como um acidente em seu sujeito,
assim como a alma minha se conforma,
está no pensamento como idéia:
[e] o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples busca a forma
Luis Vaz de Camões(1524-1580)