quinta-feira, 6 de novembro de 2008

FAROL DE MILHA

Farol de Milha -Sueli Aduan

Desligou o motor. Tirou as chaves guardou-as no bolso. Encostou lentamente a cabeça no banco, escorregou um pouco o corpo, os pés quase tocaram o acelerador. Esse incidente alegrou seu coração. Ligar novamente o motor, um pisão forte e bum... ribanceira abaixo. Quando encontrassem o carro , se o encontrassem, pensariam que foi um acidente. Mas era isso que queria? Tinha dúvidas.
Estrada perigosa em noites frias como esta quase impossível dirigir. Bom ter encostado um pouco, pôr as idéias em ordem. Seguir o conselho da mãe, na despedida, insistiu muito:
- Adallberto, por favor . Por favor, hein! Faça outro caminho. Quem sabe a BR 116, ou então use os faróis, aqueles, os de milha.
- Mãe, eu já lhe expliquei. Farol de milha... - ela erguia um pouco o olhar, os olhares encontravam-se e ele se fechava, não falava mais.
Porque será que esse olhar exercia tanto poder sobre ele, quando criança ficava horas olhando para esses mesmos olhos, e na sua inocência de menino pensava que eram um pedacinho do mar.
-Os olhos da minha mãe são azuis da cor do mar. O mar é verde, retrucava Conceição. Ele bravo gritava, na rua, na escola pros amigos:
- Azul, azul, azul e azul. Ria muito.
A mãe, era uma mulher magra, pele morena, um olhar sonso e agudo. Dava-lhe surras quando o ouvia falando assim com os meninos.
Dizia que não se pode humilhar os outros. Como se fosse obrigação ter olhos claros.
Pobre moleque. Às vezes escondia-se no fundo do quintal embaixo da velha paineira. Lá, no silêncio da noite, fazia planos. Era sempre o herói alegre, sorridente, mesmo quando em suas mãos, presenciava a morte de algum dos bichos. O sangue escorrendo não o incomodava, sentia uma coisa esquisita que não sabia explicar. Mãe sim, ficava com os olhos cheios d’água. Momento mais inoportuno para recordações.
Olhou o relógio 4 horas. Logo a polícia localizaria o carro. Alguém já deveria ter encontrado o corpo. Pensamento besta. Uma noite fria dessas, impossível. Sossegou. Ligou o rádio na procura de alguma notícia, nada. Só música.
Balançou o corpo ao som do bolero, sorrindo cantarolou: “Dois pra lá, dois pra cá, a cuba libre dá coragem, a dama de lilás”... . Há quanto tempo não dançava, não se divertia. Vidinha pobre .
“Dois pra lá, dois pra, cá.”, parou de repente, um estalo bombardeou sua mente: “Como não pensei antes, Ceição, por que não procura- lá?” .Certamente ela ajudaria.
Era uma mulher generosa, sempre envolvida em favor das minorias, dos excluídos, como costumava dizer nos comícios acreditava na mudança, na bondade do ser humano e nessas baboseiras todas. Sempre achei isso tudo um porre .
Decidido ligou o carro, e arrancou a toda., praia de Copacabana, lembrava exatamente do prédio . Não poderia ter sido outro o local escolhido. Tudo tão à mão, o morro, saídas estratégicas, a avenida principal e acima de tudo o povo, uma gente dada à alegria, à descontração. Ideal para misturar-se, ficar uns tempos escondido até a poeira baixar.
Trêmulo, sem saber exatamente o que falar, tocou a campainha, depois de um longo abraço e um breve fitar de olhos foi Conceição quem falou. Um novo plano, dessa vez sem erros. Adalberto não pestanejou, nem poderia, instalou-se confortavelmente no velho sofá e a noite, após o jantar, dirigiu-se a uma saletinha existente no fim do corredor.
Ao lado uma janelinha com cortinas brancas, um vaso verde com flores, uma mesa de madeira tentavam dar ao ambiente um clima de lar.
Apartamento pequeno, simples. É, a gente se acostuma com a pobreza, a morar em apartamentos de fundos, ficar sem ver a rua, comer pouco. Eram os pensamentos de Adalberto quando Conceição, vindo da cozinha, sorrindo, entregou-lhe um amontoado de papéis. Meio sem jeito como se ela tivesse percebido seus devaneios, esticou as mãos e começou rapidamente a leitura.
Peça chave do esquema, ela deveria afastar-se uns dias do apartamento para reaparecer no momento exato. Maneco e Luís ficariam no carro atentos ao movimento da avenida. Detalhes, nomes de pessoas, horários, gráficos, tudo devidamente organizado.
Acabada a leitura, Adalberto fitou Conceição por algum tempo, em silêncio e fechando a cara disse : - não pensaram em mim, é ? Ele Beto , que nunca esconderá, desde garoto ,sua queda para herói, queria o papel de destaque, sentia-se pronto .
Com ar de superioridade abordaria o presidente logo que este desse os primeiros passos junto a comitiva. Se preciso usaria da força física, coisa que , sempre fez questão de demonstrar.
Procurar Conceição encheu-lhe de confiança . Não podia contar-lhe a encrenca em que se metera. Não agora, melhor mesmo era ficar quieto e, seguir em frente. O jeito era fingir sono, e dizer boa noite.
Foi o que fez. Dormiu profundamente e acordou com a amiga trazendo-lhe uma bandeja com bolachas e café forte. Afetuosamente ela alisou-lhe os cabelos. Apanhado de surpresa não atinou de imediato com o motivo de tanto carinho. Ela mesma se encarregou de mostrar a razão:
“O que está escondendo, Adalberto?. Não confia mais em mim, somos amigos, não? Desorientado, sem saber como proceder, o olhar cravado no corpo de Conceição, que de camisola, insinuava-se, começou a balbuciar algumas palavras e numa evolução rápida articulando idéias que finalmente explodiram numa confissão, declarou:
Afundei o punhal no ventre de Tereza, talvez a polícia já saiba.
Conceição tomada de espanto ouviu atentamente o relato que se seguiu, as palavras ditas eram frias, sem emoção .Havia naquele corpo sadio de homem uma mente perversa, doente, alimentada pelo prazer da morte, do sangue.
Perplexa pela crueza, pela descoberta, os olhos de Ceição expressavam a descrença quanto às possibilidades do velho companheiro participar do seqüestro do presidente.
Ao desviar o olhar do corpo da amiga, Adalberto sentiu-se como o menino frente ao olhar da mãe. Perdido ensaiou um sorriso sem muita convicção, última estratégia na tentativa de comove-lá . Ela não se deixou enganar. Não fora criada para sentir dó ou medo.
Tudo o que sabia era que na sua frente tinha um homem, não um qualquer, um amigo, que puxou uma faca, não uma faca qualquer, um punhal, e encostou no peito da mulher desceu até o ventre com numa dança macabra e cravou na companheira, na amada. Nada justificava esse ato. Violência nunca fez parte da sua vida .
Conceição acalentava um sonho, era quase uma imagem, a chuva molhava o verde do campo,o campo de seus pais, da sua infância, de seu país, os campos de sua vida, fartura e alegria juntas.
Esse sonho foi amadurecendo junto com os companheiros do partido. Ter uma conversa cara a cara com o presidente, sensibilizá-lo, persuadi-lo, usar do poder das palavras era sua meta.
Numa arrancada súbita, Conceição se deslocou quase solene em direção à porta, logo freando o passo, virou-se e pediu a chave do apartamento.
Tirem as algemas.
Quer água?
Não. Tem certeza?
Certo .Vamos ver se eu entendi direito, Sr. Adalberto.
O senhor. disse que estava parado uns tempos na casa de sua amiga. Como é mesmo o nome dela?
Conceição. Ah, é isso. Conceição. Tereza era sua esposa, correto?
Respiração descompassada, mãos trêmulas, Adalberto, olhou firmemente para o delegado e disse:
Faz muito, muito tempo mesmo que não vejo a Tereza, estávamos morando em casa separada.
Sr. Adalberto não estou perguntando nada.
Claro, claro, só estou querendo colaborar.
Vamos por parte. Então, o senhor estava na casa da sua amiga, militante política com um plano para seqüestrar o presidente em sua visita ao Rio, correto?
Sim.
Pelo amor de Deus, homem, como posso acreditar numa loucura dessas. Porque não confessa que assassinou sua mulher, que ela o traía, que perdeu a cabeça. Essas coisas acontecem, sabe. E ademais confessando, a pena será menor.
O doutor está me acusando sem provas, quero dar um telefonema , falar com meus advogados.
O telefone está sem linha, chove muito, em dias assim é quase impossível conseguir uma ligação.
Porque o senhor correu quando avistou a polícia?
Não corri da polícia, é que quis alcançar Conceição.
Ela estava fugindo do senhor, o que houve? desentenderam-se, são amantes, ela é bonitinha.?
Por favor, delegado, vamos com calma.
Calma, o que ? Já cansei dessa sua lenga-lenga.
Guardas, algemem o homem..
Adalberto acordou com dores nas costas, noite mal dormida, que sonho terrível. Tereza ensangüentada, um cachorro lambia-lhe os lábios, cheiro de urina. Foi quando percebeu que estava todo molhado. Como aconteceu aquilo, não se lembrava.
Será que mijei dormindo? Melhor confessar tudo, não estou suportando, capaz de ter um treco. Não. Não posso confessar. É preciso manter a serenidade.
Seus joelhos doíam muito:
_guarda preciso de ajuda não consigo levantar-me.
O senhor pensa que todo mundo aqui é idiota, e?
Não claro que não, só preciso ficar em pé.
É uma jogada sua.
Mas é óbvio que não, sou um cidadão, não sou um marginal.
Por quê o sujeito aí pensa que é melhor que os outros é, só porque é estudado?
O que você sabe da minha vida?
Sabemos tudo doutorzinho de merda.
O delegado teve uma conversinha com sua mãe. O que? É, e nem precisou intimação não, foi só um telefonema, ela veio rapidinho. Deve gostar muito do meninão aí.
Lindos olhos os dela. E como fala bonito, falou foi muito. O senhor é mesmo nervosinho desde criança, e pelo jeito chegado numa malvadeza, ver bicho morrer, cheirar sangue.
Alguma tara doutor? Vá à merda.
Solta, solta meu pescoço, tenho meus direitos, senhor policial.
Então porque o sujeito aí não desembucha, quem sabe eu entenda.
Não tenho nada a falar com o senhor.
Azar o seu, vai apodrecer nesta cela.
Por um momento Adalberto pensou em confessar, chamar o delegado explicar direitinho o que realmente aconteceu, talvez ele compreendesse, era um homem. E Tereza deixava qualquer um louco.
Não, não podia esperar por compreensão, de nada adiantaria apelar para honra, dizer que perdeu a cabeça , que a amava, que não conseguia viver com a traição. Falar de suas tardes de angústia , enquanto Tereza retocava o batom, seu cheiro doce ainda na memória, suas pernas levemente bronzeadas, os cabelos molhados, a imagem do amante. Eles juntos.
Não, no fundo sabia-se um fraco, um conservador, arraigado a velhos costumes, velhas idéias.
O jeito era negar, negar, não fora ele e pronto. Limpou tudo antes de sair, a mesa, a garrafa de vinho, as taças, admirava sua organização, seu jeito excessivamente detalhista.
Só não mexeu mesmo no corpo estendido no meio da sala, o punhal encravado no ventre, a poça de sangue que se formou, e o último olhar de Tereza. Porque será que aquele olhar ,feito o da mãe, incomodava-lhe tanto.
Ainda hoje, passado tanto tempo, sentado em frente ao mar , relembra cada detalhe, a amiga Ceição, Tereza, a mãe, os bichos , a infância, as noites na prisão, solidão e tristeza.
Mas nada, nada se compara ao azul daquele olhar, ou seria verde, como o mar..

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