DãoDão e Zé Pelonga- Sueli Aduan
Voltou para casa no finalzinho da tarde, já escuro. Entrou pela porta dos fundos, bem devagarinho, com cautela. Não queria que mãe o visse. Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Choro baixinho, soluço seco, engolido. Como doía, vergonha e tristeza.
O calção todo sujo de barro, camiseta manchada, as vozes em sua mente, os xingamentos ganhando força na medida em que revia cada cena.
Quando querem meninos são cruéis.
Menino franzino, solitário, Dãodão ia passando em revista cada ato falho, cada oportunidade perdida. Sabia dos erros cometidos. Evitá-los. De que jeito?
Nessas horas só uma imagem apaziguava seu coração, a figura do avô sentado em sua cadeira de balanço, pra frente, pra trás, num ritmo suave, a conversa mansa.
Vô era amoroso, homem bom, sempre pronto a escutar, a contar estórias.
Falava da vida difícil de menino, de gente grande sempre pronta a interromper brincadeiras tão sérias, a dar ordens sem precisão. Gente esquisita.
Na época do plantio, meninos e meninas corriam cantando em meio ao campo.
Só paravam mesmo no momento de colocar a semente na terra, tudo feito como numa festa. Um ritual quase religioso, não fosse a safadagem ao olhar as meninas, feito bicho cobiçando preza.
Dãodão achava tudo tão natural.
Vô abençoava a todos antes do plantio, seus olhos claros transmitiam tanta certeza, como se o fruto já estivesse ali. Mãe não. Mulher sofrida, só sabia obedecer ao pai, fazer tudo com presa, com medo.
E pai só fazia ralhar.
Dãodão gostava mesmo é de escutar o vô. Ria muito com as estórias que ele contava. Tinha a do Tibúrcio, que levara uma baita surra quando o pai o pegou escondidinho espionando Carmela se despir. Linda como a luz da lua.
E vô dizia:
-Qué coisa mai bunita qui vê muiê tirano ropa. Bem devagarinho, o saiote iscurregando, as anca balançando, i a gente ficano loco.
Dãodão ria, e vô falava:
-Ri não muleque, muiê é coisa séria, é danação.
Danação mesmo era o que Dãodão sentia agora, ali sozinho, sem a presença alegre do avô, sem suas estórias, sem seus conselhos. Tinha certeza que só vô iria acreditar que ele fez de tudo, correu, até driblou, mas não conseguiu.
Mas vô tinha morrido, ou como dizia Tibéria:
Morreu não, ficou encantado lá no milharal. Dãodão não tinha medo. Medo mesmo, tinha do pai gritando todo dia:
-Vai, treiná minino. Jogá bola, sê jogado, ficá rico, i imbora do Cariri. Fica aí falano suzinho, parece reza de nêga.
E não é que era mesmo, quase uma oração, uma ladainha. Mal rompia a manhã, Dãodão abria a janela, e junto com o vento fresquinho elas chegavam. Como uma bola que um jogador passa ao outro, as palavras vinham rolando.
E Dãodão lembrava-se novamente do avô, de sua voz rouca:
-Dão, vem qui minino. Dão, vem. Vou ti insina fazê uma coisa linda que gira, gira como tudo nesse mundão.
E naqueles fins de tarde sentados na varanda, ele e vô pegavam revistas, pauzinhos e o brinquedo ia surgindo.
Dão, é ansim: ocê tira as foia da revista, enrola bem enroladinho, fica qui nem um canudinho. Faiz um montão, i dispôis vai culando nos pauzinho, dai sua peorra tá pronta. I é só rodá no chão. Ela roda, roda até cair.
Dão olhava as revistas com seus olhos curiosos, olhava o formato de cada palavra e gostava do que via.
Seus olhos brilhavam. Vô, homem sempre atento a tudo dizia:
-Si preocupa não Dão. Um dia ocê vai pra escola e aprende as palavra, qui são bela cumo muiê. Cheia de força e mistério, iguar elas. Óia essa: “coração”, qui palavra qui faiz a gente pensa! Óie outra, que belezura: “pé”. I essa intão: “mão”. São tantas,qui enche essa vida doída da gente e dão uma alegria.
Foi tomado por essa alegria sem explicação que Dãodão sentiu uma coisa esquentar dentro dele, bulir com ele.
A lembrança da peorra, as palavras do vô ganhando força tomaram conta de seu corpo, franzino, e ele sentiu-se como um gigante.
Tomado por esse mistério enxugou os olhos, abriu o guarda-roupa. De soslaio viu a peorra guardada. Pegou uma camisa limpinha, trocou o calção sujo de barro, as mãos já seguravam a bola. Abriu a porta do quarto e correu, correu, correu. Só parou quando chegou ao campinho.
Os meninos a olharem para ele. Zé Pelonga com um sorriso maroto.
A desforra chegara.
Dãodão colocou a bola no chão, deu o primeiro chute, a partida recomeçava.
Foi uma passa-passa, um corre-corre, olho no olho.
O amigo Zé Pelonga fez o passe. De frente pro gol, Dãodão chutou. A bola entrou lentamente, girando, girando: Goooooooooooool. Golaaaaaaaaço.
Uma mistura de alegria e tristeza naquele fim de tarde.
Vô tinha razão, as palavras têm força e mistério. E tudo gira no mundo.
Foi de goleada vô!
O calção todo sujo de barro, camiseta manchada, as vozes em sua mente, os xingamentos ganhando força na medida em que revia cada cena.
Quando querem meninos são cruéis.
Menino franzino, solitário, Dãodão ia passando em revista cada ato falho, cada oportunidade perdida. Sabia dos erros cometidos. Evitá-los. De que jeito?
Nessas horas só uma imagem apaziguava seu coração, a figura do avô sentado em sua cadeira de balanço, pra frente, pra trás, num ritmo suave, a conversa mansa.
Vô era amoroso, homem bom, sempre pronto a escutar, a contar estórias.
Falava da vida difícil de menino, de gente grande sempre pronta a interromper brincadeiras tão sérias, a dar ordens sem precisão. Gente esquisita.
Na época do plantio, meninos e meninas corriam cantando em meio ao campo.
Só paravam mesmo no momento de colocar a semente na terra, tudo feito como numa festa. Um ritual quase religioso, não fosse a safadagem ao olhar as meninas, feito bicho cobiçando preza.
Dãodão achava tudo tão natural.
Vô abençoava a todos antes do plantio, seus olhos claros transmitiam tanta certeza, como se o fruto já estivesse ali. Mãe não. Mulher sofrida, só sabia obedecer ao pai, fazer tudo com presa, com medo.
E pai só fazia ralhar.
Dãodão gostava mesmo é de escutar o vô. Ria muito com as estórias que ele contava. Tinha a do Tibúrcio, que levara uma baita surra quando o pai o pegou escondidinho espionando Carmela se despir. Linda como a luz da lua.
E vô dizia:
-Qué coisa mai bunita qui vê muiê tirano ropa. Bem devagarinho, o saiote iscurregando, as anca balançando, i a gente ficano loco.
Dãodão ria, e vô falava:
-Ri não muleque, muiê é coisa séria, é danação.
Danação mesmo era o que Dãodão sentia agora, ali sozinho, sem a presença alegre do avô, sem suas estórias, sem seus conselhos. Tinha certeza que só vô iria acreditar que ele fez de tudo, correu, até driblou, mas não conseguiu.
Mas vô tinha morrido, ou como dizia Tibéria:
Morreu não, ficou encantado lá no milharal. Dãodão não tinha medo. Medo mesmo, tinha do pai gritando todo dia:
-Vai, treiná minino. Jogá bola, sê jogado, ficá rico, i imbora do Cariri. Fica aí falano suzinho, parece reza de nêga.
E não é que era mesmo, quase uma oração, uma ladainha. Mal rompia a manhã, Dãodão abria a janela, e junto com o vento fresquinho elas chegavam. Como uma bola que um jogador passa ao outro, as palavras vinham rolando.
E Dãodão lembrava-se novamente do avô, de sua voz rouca:
-Dão, vem qui minino. Dão, vem. Vou ti insina fazê uma coisa linda que gira, gira como tudo nesse mundão.
E naqueles fins de tarde sentados na varanda, ele e vô pegavam revistas, pauzinhos e o brinquedo ia surgindo.
Dão, é ansim: ocê tira as foia da revista, enrola bem enroladinho, fica qui nem um canudinho. Faiz um montão, i dispôis vai culando nos pauzinho, dai sua peorra tá pronta. I é só rodá no chão. Ela roda, roda até cair.
Dão olhava as revistas com seus olhos curiosos, olhava o formato de cada palavra e gostava do que via.
Seus olhos brilhavam. Vô, homem sempre atento a tudo dizia:
-Si preocupa não Dão. Um dia ocê vai pra escola e aprende as palavra, qui são bela cumo muiê. Cheia de força e mistério, iguar elas. Óia essa: “coração”, qui palavra qui faiz a gente pensa! Óie outra, que belezura: “pé”. I essa intão: “mão”. São tantas,qui enche essa vida doída da gente e dão uma alegria.
Foi tomado por essa alegria sem explicação que Dãodão sentiu uma coisa esquentar dentro dele, bulir com ele.
A lembrança da peorra, as palavras do vô ganhando força tomaram conta de seu corpo, franzino, e ele sentiu-se como um gigante.
Tomado por esse mistério enxugou os olhos, abriu o guarda-roupa. De soslaio viu a peorra guardada. Pegou uma camisa limpinha, trocou o calção sujo de barro, as mãos já seguravam a bola. Abriu a porta do quarto e correu, correu, correu. Só parou quando chegou ao campinho.
Os meninos a olharem para ele. Zé Pelonga com um sorriso maroto.
A desforra chegara.
Dãodão colocou a bola no chão, deu o primeiro chute, a partida recomeçava.
Foi uma passa-passa, um corre-corre, olho no olho.
O amigo Zé Pelonga fez o passe. De frente pro gol, Dãodão chutou. A bola entrou lentamente, girando, girando: Goooooooooooool. Golaaaaaaaaço.
Uma mistura de alegria e tristeza naquele fim de tarde.
Vô tinha razão, as palavras têm força e mistério. E tudo gira no mundo.
Foi de goleada vô!
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