Jorge Luis Borges. “O Enigma da Poesia” in Esse Ofício do Verso (pp. 11-12)
(...) Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma "expressão". Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. Assim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia — a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.Ora, tendemos a fazer uma confusão corriqueira. Pensamos, por exemplo, que se estudarmos Homero, ou a Divina comédia, ou Frei Luis de León, ou Macbeth, estaremos estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poesia. Creio que Emerson escreveu em algum lugar que urna biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos. E aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta à vida quando se abrem as suas páginas.Falando sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza dos Estados Unidos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã — a maçã não pode ter gosto por si mesma — nem na boca de quem come. E preciso um contato entre elas. O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras — ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos — saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra.
Jorge Luis Borges, Esse Ofício do Verso. São Paulo: Cia das Letras, 2000
(...) Sempre que folheava livros de estética, tinha a desconfortável sensação de estar lendo as obras de astrônomos que nunca contemplavam as estrelas. Quero dizer, eles escreviam sobre poesia como se a poesia fosse uma tarefa, e não o que é em realidade: uma paixão e um prazer. Por exemplo, li com grande respeito o livro sobre estética de Benedetto Croce, em que aprendi que poesia e linguagem são uma "expressão". Ora, se pensamos na expressão de algo, tornamos a cair no velho problema de forma e conteúdo; e se pensamos sobre a expressão de nada em particular, isso de fato não nos rende nada. Assim, respeitosamente recebemos essa definição e passamos adiante. Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia — a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.Ora, tendemos a fazer uma confusão corriqueira. Pensamos, por exemplo, que se estudarmos Homero, ou a Divina comédia, ou Frei Luis de León, ou Macbeth, estaremos estudando poesia. Mas os livros são somente ocasiões para a poesia. Creio que Emerson escreveu em algum lugar que urna biblioteca é um tipo de caverna mágica cheia de mortos. E aqueles mortos podem ser ressuscitados, podem ser trazidos de volta à vida quando se abrem as suas páginas.Falando sobre o bispo Berkeley (que, permitam-me lembrar, foi um profeta da grandeza dos Estados Unidos), lembro que ele escreveu que o gosto da maçã não estava nem na própria maçã — a maçã não pode ter gosto por si mesma — nem na boca de quem come. E preciso um contato entre elas. O mesmo acontece com um livro ou com uma coleção deles, uma biblioteca. Pois o que é um livro em si mesmo? Um livro é um objeto físico num mundo de objetos físicos. É um conjunto de símbolos mortos. E então aparece o leitor certo, e as palavras — ou antes, a poesia por trás das palavras, pois as próprias palavras são meros símbolos — saltam para a vida, e temos uma ressurreição da palavra.
Jorge Luis Borges, Esse Ofício do Verso. São Paulo: Cia das Letras, 2000
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