Não era miado. Agora ela tinha certeza. Era um choro abafado, que insistia em preencher o vazio daquelas horas mortas. Uma criança recém-nascida, talvez? Desceu a escada curiosa. Abriu a porta da sala e viu Helena lá fora com um bebê no colo. A mesma Helena que saíra de casa furiosa, prometendo nunca mais voltar. Olhou para dentro dos olhos dela. Olhou para a criança e sorriu. Balançou a cabeça de cima para baixo, num sinal de consentimento. Pode entrar, minha filha. Você chegou no dia certo.
É Natal.
É Natal.
FINADOS
O anjo piscou pra mim. Pisquei de volta.
- E aí, tudo bem?
- Tudo bem, disse ele, batendo as asas e desfazendo a pose de estátua. Chegou bem perto de mim e cochichou no meu ouvido.
-Quer saber de uma coisa? Tô de saco cheio de ficar aqui plantado, com essa cara de santo, rezando pelas almas dos mortos. Bom mesmo era o meu emprego de cupido. Tocava fogo no coração da moçada. Seu avô e sua avó, que agora descansam em paz, se apaixonaram por minha causa. Foi tudo armação minha.
Disse isso e piscou mais uma vez, voltando a ficar imóvel.
Pensei com meus botões. É isso aí, seu anjo. Se não fosse você, eu não existiria. Nem estaria aqui, lavando túmulo, nessa tarde morna de finados.
ANOSMIA
Eles estavam ali, no Centro da Memória. O instrutor tinha convocado a reunião para falar sobre um tema comum a todos: o cheiro. Dei meu testemunho:
- Para mim, o cheiro de alho é carregado de emoção. Lembra minha mãe, sua comida, minha infância. Tempos que não voltam mais.
Outros depoimentos se seguiram. Alguns destacavam os cheiros de flores, de perfumes de pessoas amadas ou odiadas. Outros partiam para a escatologia: falavam de cheiros corporais, de suor, urina e fezes. Muitas histórias de paixões, tristezas e alegrias.
Ouvindo com muita atenção, ele se encolheu no canto da sala. Como se tivesse cometido um pecado gravíssimo, confessou:
- Invejo vocês. Não sinto e nunca sentirei cheiro nenhum. Tenho anosmia, falta de olfato. O mundo, para mim, é um quadro de natureza morta.
JASMIM
You make me feel so young
You make me feel like spring has sprung…
A música de Sinatra invadiu o quarto e ele se viu ainda moço, correndo no campo com sua amada, colhendo flores pelo caminho e brincando de esconde-esconde.
De repente um alvoroço ao seu redor, luzes em seu rosto, o médico com ar preocupado. Um cheiro forte de jasmim. Ela estava ali para voar com ele para muito, muito longe.
FREE AGAIN
Estava quase sem fôlego. Queria se misturar àquela massa humana, ficar invisível na multidão, fugir daquele pesadelo. Entrou no vagão e olhou ao redor. Ele finalmente tinha desaparecido e ela podia agora respirar aliviada. A próxima estação estava chegando: Liberdade.
DECLARAÇÃO
Ele estava sentado na mesma mesinha do café em que se conheceram. Com aquele romantismo de galã barato, beijou sua mão e ajeitou a cadeira, disfarçando o nervosismo.
- Sabe aquele exame de sangue que eu te falei? Pois é, deu HIV positivo.
Elizabete Leite: Professora de Português/ Inglês - moradora de Tatui. Atualmente minha aluna na Oficina de Literatura Gênero Minimalista: "Os Minicontos" , no Museu Paulo Setúbal.
4 comentários:
Elizabete,
Fiquei muito feliz com o envio.
grata.
São ótimo os minicontos.
abrs
ops , ótimos , aliás o comentário de todos ( na aula)rs
Meu Deus! Que beleza de postagem Su.Adorei os minicontos, coisa de mestre.A Elizabete é fantastica.Ah eu queria morar por ai, para ser um aluno, com todo este potencial.
Parabens a Bete.
Um abração amiga.
Bjus.
É fantástica sim, Toninhobira. Todos dessa Oficina são muito bons.
Seria ótimo se vc morasse perto, que grande troca na arte da escrita,heim.
ABRAÇOS AMIGO.
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