DESAPRENDENDO A LIÇÃO
Affonso Romano de Sant’anna
“Há uma idade em que se
ensina o que se sabe, mas em seguida vem outra idade em que se ensina o que não
se sabe”. Esta frase de Roland Barthes é instigante. Desmistifica a prática
usual do ensino. Por isto, ele continua seu pensamento afirmando que é preciso “desaprender”,
"deixar trabalhar o imprevisível” até que surja a chamada “sapiência”, uma
sensação de “nenhum poder, um pouco de saber”, mas com “o maior sabor
possível”. E num seminário em Paris, praticando a errância do saber, propôs aos
alunos que o encontro na classe não tivesse tema pré-determinado. O desejo
inconsciente do saber é que deveria aflorar o tema. Ali os alunos deveriam não
apenas desejar saber, mas saber desejar.
Desejar o saber é uma
primeira etapa, mas saber desejar é refinada atitude. Entre um e outro vai a
distância do canibal ao gourmet.Como derivação das colocações de Barthes se
poderia dizer: o professor pensa ensinar o que sabe, o que recolheu dos livros
e da vida. Mas o aluno aprende do professor não necessariamente o que o outro
quer ensinar, mas aquilo que quer aprender. Assim o aluno pode aprender o avesso
ou o diferente do que o professor ensinou. Ou aquilo que o mestre nem sabe que
ensinou, mas o aluno reteve. O professor, por isto, ensina também o que não
quer, algo de que não se dá conta e passa silenciosamente pelos gestos e
paredes da sala. É, aliás, a mesma história que se dá com o texto. O autor se
propõe a dizer uma coisa, mas o leitor constrói sua leitura segundo suas
carências e iluminações. Por isto se equivocou Jacques Derridá ao dizer que o
texto escrito segue livre sem paternidade, enquanto o discurso oral é tutelado
pelo orador. O orador também não controla seu discurso, pelo simples fato de
estar presente.
A palavra ao ser
pronunciada já não nos pertence. O orador é falado pelo seu discurso. Fala-se o
que se pensa que se sabe, ouve-se o que se pensa que foi pronunciado. O sentido
é construído a muitas vozes e ouvidos, harmonicamente. Tinha razão o polifônico
Sócrates: “A verdade não está com os homens, mas entre os homens”. Repitamos a
frase de Barthes: “Há uma idade em que se ensina o que se sabe, mas em seguida
vem outra idade em que se ensina o que não se sabe”. E adicionemos o seguinte
raciocínio: em geral pensa-se que o professor é aquele que “fala”, que preenche
com seu encachoeirado discurso uma aula de 50 minutos ou um seminário de três
horas. Este é um conceito de ensino como uma atividade “oracular” da parte do
mestre, que se complementa numa passividade “auricular” da parte do aluno.
Contudo, assim como o
espaço em branco é importante no poema, assim como a pausa organiza a música, o
saber pode brotar do silêncio. O jorro contínuo de palavras pode ostentar
apenas ansiedade. O conhecimento pode se instalar no entreato. O silêncio
também fala. É isto que se aprende durante as ditaduras. E, por outro lado,
durante as democracias se aprende que o discurso nem sempre diz. Portanto, à
audácia de desaprender o aprendido soma-se a astúcia do silêncio. No princípio
era o Verbo. A construção do silêncio exige muitas palavras. O escritor, por
exemplo, constrói uma casa de palavras para ouvir seu silêncio interior. Comecei
falando em Barthes. E aquela frase inicial dele remete não só para a questão do
“saber” e do “sabor”, mas do “saber” e do “poder”. Na verdade enriquece-se o
saber combatendo-se o poder que ele aparenta. E uma forma de incrementar o
poder é o “perder”. Assim, o melhor professor seria aquele que não detém o
poder e nem o saber, mas que está disposto a perder o poder, para fazer emergir
o saber múltiplo. Nesse caso, perder é uma forma de ganhar e o saber é
recomeçar.
E para terminar, nada
melhor que uma frase de outro desconstrutor de verdades, que é Guimarães Rosa:
“Mestre não é quem ensina, mas aquele que, de repente, aprende”.
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