terça-feira, 5 de outubro de 2010

"A surpresa do ser"


Se a filosofia nunca soube ao certo o que é o ser (a metafísica ocidental só fez oculta-lo ainda mais), em Heidegger ele ressurge iluminado pela linguagem poética. A poesia é a “casa do ser”; só através dela é possível comemorá-lo sem perdê-lo de vista; só ela é capaz de evocá-lo em seu movimento fulgurante. O ser é uma surpresa que os poemas ajudam a vislumbrar. Seis séculos antes de Cristo, a filosofia nasce justamente em confronto com a poesia (e seus mitos), que antes de emancipar-se como forma autônoma destinava-se à revelação do sagrado. A idéia heideggeriana de que a poesia nos lembra o ser encontra-se em sua “Carta sobre o humanismo”, a qual se encerra com estas palavras: “na presente indigência do mundo é necessário: menos filosofia e mais desvelo do pensar, menos literatura e mais cultivo da letra”. Orides Fontela provavelmente pensava nisso quando disse num depoimento: ‘Nossa época é terrível, somos poetas em tempo de desgraça”. Orides se foi. Já não presencia os infortúnios de nosso tempo nem deles participa, mas sua poesia cristalina continua exercendo o “desvelo do pensar” e o “cultivo da letra”, de que fala Heidegger, provocando o ser à luz da linguagem. Aliás, do que mais se ocupam seus poemas? Orides fontela, como Paul Celan, é daqueles artífices que clareiam o ser ao mesmo tempo em que propõem uma indagação essencial sobre o ser da própria poesia. Ler sua obra é constatar que o ser em geral, no sentido heideggeriano, questão sempre aberta, e o ser lucífugo da poesia têm idêntica irradiação. Ambos podem nomear-se como aquilo que não se sabe ao certo o que é, mas que se deixa perceber no mesmo instante em que se furta como pedra filosofal da leitura. “Natureza ama ocultar-se”, conforme o célebre fragmento de Heráclito.

Artigo postado, na minha coluna mensal, no Imaginário Poético com  o poema "Fala" de Orides Fontella.
Referências bibliográficas:
BORGES, Contador. A surpresa do ser. In Revista Cult/novembro 1999.
FONTELA, Orides. Poesia Reunida [1969-1996] São Paulo: Cosac Naify: Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006

8 comentários:

Anônimo disse...

Bacana o texto, minha cara. Nada a acrescentar.
Grande abraço,

cristinasiqueira disse...

Reflexões oportunas.
Sempre algo de conhecimento chega por você.

Obrigada,


Cris

sueli aduan disse...

É muito bom sim, Rodrigo. Gosto dos escritos dele.
Grande abraço

sueli aduan disse...

Obrigada pelo carinho,Cris!
Fiquei muito feliz com "tua fala", estamos sempre aprendendo uns com os outros.

beijos

Katia em anexo disse...

Muito bacana... se pensar cada ser um poema...

sueli aduan disse...

Sim,kátia."cada ser um poema"
"uma luz"
"o sal da Terra"...

bjus

CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos) disse...

Sueli,
Belíssimo artigo, arte que faz o ser mais ser, menos dever...
Multimultipliquei-me aqui, moça sensível de Sorocaba...
Convido-te a conhecer o CANTO GERAL DO BRASIL (e outros cantos), pequeno jardim de homenagens que hoje canta os onze anos sem João Cabral...
Bora lá?

Abraço mineiro,
Pedro Ramúcio.

sueli aduan disse...

Obrigadíssima,Pedro.Adorei tua visita, teu comentário.

Já estou lá no Canto Geral...

beijos