Que é que desperta num sujeito compulsão irresistível de exprimir sua opinião sobre um assunto que nem sequer lhe interessou o bastante para que se desse o trabalho de estudá-lo? De onde vem esse impulso demencial de ensinar sem saber?
Uma vez, numa aula, como eu contestasse a noção vulgar de “história dos vencedores”, alegando que justamente os perdedores do presente vão buscar refúgio na investigação do passado, um ouvinte, indignado, protestou que “a maioria esmagadora” das obras célebres de historiografia exemplificava aquela noção. Para não perder tempo com a demonstração do óbvio, solicitei apenas que o cidadão citasse cinco títulos dessas obras célebres. Se ele pudesse apontar cinco títulos, prometi, eu admitiria que eram a maioria esmagadora. Evidentemente, ele não citou nenhum.
Mais tarde reclamaram que eu humilhei a criatura. Mas não tinham idéia de quanto pode ser humilhante, para o homem que estudou um assunto décadas, ser confrontado em pé de igualdade com o opinador ignaro, diante de uma platéia que vai nos julgar antes pelas simpatias pessoais e ideológicas do que pelo conhecimento da matéria. Nunca me saí mal dessas situações, mas a simples anuência de entrar nelas, em nome do dever de ensinar, requer da gente uma dose de humildade que as pessoas em geral estão longe de imaginar.
O que entendem por humildade é outra coisa. Humildade, neste país, consiste em arrotar opiniões sobre o que se desconhece e exigir que o sujeito que conhece as aceite como se valessem tanto quanto as dele. Humildade é complacência deleitosa com a própria ignorância, acompanhada de desprezo pelo saber. Exigir respeito pelo conhecimento, querer que o sujeito aprenda antes de opinar. Ah!, Isto é orgulho, é soberba, é pecado mortal.
Quanto mais observo os hábitos das classes falantes, mais me parece estranho e doentio. Pois eu, quando algum problema me chama a atenção, sinto o impulso exatamente oposto: quero saber mais. Faço perguntas, investigo, leio livros, obtenho o máximo de dados sobre a evolução das discussões e, uma vez de posse de uma visão suficientemente abrangente do status quaestionis, deixo que toda a complexidade e todas as contradições do assunto fiquem cozinhando dentro de mim, se preciso por anos a fio, até obter alguma intuição que me permita reordenar os dados na forma de uma solução.
Durante toda essa incubação, não sinto nenhum, nenhum impulso de falar a respeito, ao menos para um público maior, precisamente porque tenho a consciência de que qualquer coisa que eu dissesse aí não será mais que uma ejaculação precoce, expressão da minha confusão interior, que na melhor das hipóteses arriscaria persuadir o ouvinte sem ter-me persuadido a mim mesmo.
O desejo de falar só nasce depois que alcancei o insight. Mesmo um insight, no entanto, não é prova de nada e a mera posse dele não me autoriza nem me impele de maneira alguma a assumir minha opinião polemicamente, a defendê-la com brio contra as hipóteses correntes. Isto só acontece muito tempo depois, quando uma sucessão de insights convergentes me deu um sentimento de certeza razoável, sobrevivente ao teste das contradições.
E mesmo assim, porca miséria, pode dar tudo errado
6 comentários:
Minha querida amiga, digo-lhe apenas que tens ainda, muita sorte de encontrar pessoas que se coloquem a falar..eu em minhas andanças pelo mundo tenho sentido é falta de quem se ponha a verbalizar,orar..enfim, se colocar de alguma forma, que nao seja sua propria existencia física.
Já nem me importo mais se o que tenho de ouvir são bobagens e equivocos absolutos, quando me encontro nestas situacoes, vem em mim um certo alívio, pois me dão o direito de ouvir, e logo poderei falar.
Como este mundo anda quieto, impressionante!!!!
Tudo que ouço, já ouvi antes noutro lugar.
Parece que só querem falar de coisas que já disseram antes. Nunca acrescentam nem uma palavra sequer...ficam numa reverberação sem fim dos assuntos, que quando ligo a tv estão lá se repetindo dias e dias, por horas e horas.
Acho que o que precisamos, querida amiga, é de um café e de alguem com quem possamos de fato prozear..num tom mais intimista, de quem tem o que falar.
Tem razão, Carlinha, não estou podendo reclamar, não. Mas esse falar, essa troca se dá mais por conta do trabalho...das Oficinas das aulas, Senac, alguns encontros...da escrita que não deixa de ser um falar e um ouvir (se ouvir), e por ai... nos poucos e maravilhosos amigos , como vc, (e-mails, blogs e afins rsrs)
No mais concordo com o texto,...rsrs há muita bobagem sendo dita, ia bem mesmo: um café e muita, muita prosa, das boas.... Saudade!!!
beijão
As vezes eu vendo uma situação dessas acho engraçado... Ou como, pelo que me conhece já deve ter percebido, só abro minha boca quando acho absurdo rs... Não tenho ansia em falar.... prefiro ouvir, e se aquilo me despertar algo...buscar, buscar e buscar... É claro, é um barato discutir um assunto que encontramos alguém para discutir... mas isso em pé de igualdade... como uma troca, não com uma imposição de opinião. Eu quero semelhantes... isso é interessante... Resumindo... curti o texto dona Flor....
É isso florzinha, buscar..buscar.. e com paixão como dizia, Lou Andréas Salomé. Seja para viver um amor, ou interpretar um poema...um livro... Vc é uma dessas!!!
Mas nem todos pensam assim,não é? E falam...falam... tb curto esse texto é muito verdadeiro.
bjus
Ótimo texto! Muito coerente e sensato. Sinto o mesmo quando discorro acerca de um assunto que tenho razoável certeza ou ao menos sei mais que o meu ouvinte e este passa a falar bobagens querendo que eu aceite suas bobagens com tão certas quanto as minhas. O que, diga-se, já é uma tontice, pois os dois não podem estar certos diante de uma única verdade. Mas.
Abraço,
Pois e, essa coisa da "verdade" é muito doida mesmo...Nietzsche que o diga rsrs
"Crespusculo dos idolos ou como filosofar como um martelo" e, ainda, "Nietzsche e a Verdade de Roberto Machado, uma lição sobre.
abraços
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