Diotímia atravessara a rua com passos largos, mãos trêmulas, olhos atentos movendo-se de um lado a outro, respiração ofegante.
A rua em torno era ensurdecedora. Claridade e calorão. Tudo conspirava ,a loja da esquina com seu cheiro de incenso, a velha na calçada pondo os óculos. Por um momento teve a sensação que era observada.
Na verdade, Diotímia nunca se acostumara à cidade, o corre-corre das pessoas, o barulho.
Saia pouco, às vezes era necessário. E, também tinha os biscoitos que Jorge deixava pronto às terças-feiras. Pequenos prazeres a que se permitia.
O resto do tempo ficava mesmo em seu quarto. Tempo de leitura e solidão.
O quarto era iluminado, branco, paredes caiadas; uma cama, criado-mudo o guarda-roupas, os livros. Era o que tinha e lhe bastava.
No começo, quando chegou sua estranheza tinha explicação, mundo dos símbolos das palavras, a cidade assustava e, Diotímia não sabia ler. Mas agora passado tanto tempo. Como podia? Aprendera a ler, um curso à noite, desses rápidos, mas viu seu crescimento passo a passo. Mudança e alegria ao perceber o sentido das coisas, e até compreendeu melhor as lágrimas de Tarsila.
A velha firmou mais o olhar, tirou os óculos, voltou a pô-los. Diotímia tremeu, pensou em desistir em voltar, afundar-se em sua poltrona verde oliva, cobrir-se com a manta tecida pela mãe há tanto tempo, com tanto carinho.
A lembrança dessa imagem misturada à voz doce da mãe encorajou-a seguir
Não sem dor, mas seguir.
O problema está em escolher. Sempre a escolha. Isto ou aquilo, vermelho ou azul, rosas ou margaridas.
Que importa? Agora nada lhe faltava. Gostava de viver só. Nem mesmo a morte do irmão ainda pequeno; o pai cuidando do gado sozinho, consertando cerca pro boi não fugir; cortando lenha que mãe pedia, mesmo sem precisão.
Homem paciencioso pai, tia Jacobina andando a esmo pelo vale; a casa cercada de varandas e um grande céu por cima.
Nada disso afetava Diotímia em sua nova vida na cidade.
Lembrou-se de Tarsila, irmã mais nova, que comprara um vaso novo com tulipas para enfeitar a varanda na esperança que tudo se transformasse. E transformou.
Eram tardes longas, deliciosas, em que ambas sentavam confortavelmente olhando lá longe as folhas douradas das árvores caídas por todo o chão.
Tarsila lia com sua voz rouca, seu jeito de balançar a cabeça em uma ou outra parte do livro, como que emocionada pela narrativa.
Às vezes os olhos enchiam-se de lágrimas tamanha emoção, nessas horas procurava os olhos de Diotímia como um pedido de socorro, como alguém que pede um favor, um copo d´água. Diotímia empertigada na poltrona parecia feita de pedra.
Tarsila voltava rápido para a leitura. Não compreendia essa mulher ao seu lado. Mulher criada na roça com a enxada, só chorava quando não chovia, e a lavoura ardendo na terra, se perdia.
Essas imagens em sua mente. Por quê? Há tanto não pensava na irmã, na sua morte repentina.
Morte sinistra, fora encontrada com o corpo todo comido pelos bichos, as folhas das macaúbas caídas sobre seu ventre disforme. Parecia um tapete de musgos e liquens, um convite à orgia, ao amor; o povo dizia ser coisa do tinhoso, do cão.
A varanda .... as leituras .... aquela tarde triste, quando os homens chegaram, as coisas sendo carregadas no caminhão.... a sopeira de tia Jacobina, a cristaleira .... os enfeites de mãe...
Tarsila parando a leitura bruscamente, olhando nos olhos do pai de cócoras no canto da sala, que feito criança, soluçara ali mesmo. Mãe só xingando, nunca viu mãe tão brava.
Por quê meu Deus? Essas lembranças, justo no momento que estava decidida. Só podia ser do coisa ruim. Que fosse.
A faca em suas mãos luzindo, o desejo de encravá-la, de ver o sangue quente escorrendo formando uma poça, seu cheiro forte feito a boi morto. Angústia de mulher valente resgatando coisas que se perderam, diluídas no tempo.
Diotímia acelerou mais os passos com medo que todas essas imagens a detivessem e, dobrando a esquina avistou a casa. Coração apertado. Tocou a campainha.
O homem que abriu a porta tinha um olhar cansado, quase não o reconheceu.
Olharam-se sem nada falar. Diotímia recuperando-se entrou na ampla sala. As dores do passado abrindo caminho: os ciúmes da irmã, a mágoa pelo pai que desde cedo dera lhe a enxada como sina traçada.
Tudo ganhando relevo, tomando conta do espaço numa explosão de culpa, ódio, rancor.
E, novamente a voz de Tarsila, suas estórias, cheias de significado, transformando tudo em volta.
Diotímia, já não era mais aquela mulher empertigada, percebia o mundo, compreendia o coração dos homens.
Tudo lhe faltava: o irmão morto, o vaso com tulipas, a cerca pro boi, tia Jacobina, a vida da fazenda.
Experiência singular em que Diotímia abraçando o corpo do pai, descobre o corpo do livro.
terça-feira, 13 de janeiro de 2009
Diotímia o corpo do livro - sueliaduan
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2 comentários:
Lindo Sueli, e vc fala da minha sensibilidade.... Adorei esse texto... muito forte... não demore tanto em escrever estou sempre a espera...bjs
como é boa essa força, ainda mais de alguém como vc. Kátia,minha querida,que bom não é, essa nossa paixão pela literatura, ah. senão ia ser um porre essa vida besta.
bjs
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